Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, março 10, 2011

UMA HISTÓRIA GUARDADA



Perdeste-me

e nem notei.

Naquela manhã, ao acordar, essa realidade fez-se minha companheira de viagem

Há quanto tempo saberias e não me disseste?

Ou ainda não acordaste para uma manhã como esta?

Como alguém que se esquece da carteira no assento do banco da estação

perdeste-me de vista sem notares.

Tinhas-me já perdido

e não saberias

e eu já tinha deixado que me perdesses e não te avisei?

Também te perdi pelo facto de me teres perdido sem sequer o teres notado.

Terá sido nessa manhã ou na semana passada? Num Verão ou nos Natais? Nos dias festivos ou no dia a dia que corre num leito de solidão?

Foi em bocadinhos,

bocadinhos colados nessa manhã, na semana passada, no Verão e no Natal.

Foi quando eu já estava só

e percebi que os anos tinham passado

e que a história se tornava futuro.

Foi quando deixei de ser protagonista do romance que guardavas na cabeceira da cama

e passei a encenadora, a actriz secundária ou a cenógrafa,

tornando-me transparente,

translúcida,

apêndice inalterável que estaria sempre lá

até que alguma cirurgia violenta o arrancasse do seu lugar.

Lutadora, presente ou ausente

mas alguém que entende o que mais ninguém sabe, o que ninguém mais quer realmente saber.

Alguém que sempre se atreveu a viver só.

Senti-me verdadeiramente só

somente quando, mesmo acompanhada de quem amava,

ninguém notou essa solidão.

Era tão grande que lá coube a minha tomada de consciência.


Perdeste-me

nos momentos em que não notaste que estava lá

no passar dos dias normais sem acontecimentos trágicos ou fulgurantemente determináveis

Nos outros sei que sentiste as nossas mãos gastando-se.


Perdemo-nos

Quando nada fizémos para reforçar as linhas que cosiam um mundo com costuras cada vez mais ténues, como as dobras das bainhas dos lençóis usados e dos bordados que se tornam quase invisíveis.

Linhas e alinhavos sem projecto que os prendesse com pontos mais fortes e mais bonitos, talvez como os do ponto pé-de flor, de nome tão frágil mas forte e de grande beleza: levamos a agulha um ponto à frente para logo voltarmos atrás para o reforçar.


Perdeste-me e reparaste

quando me disseste equivocada porque

a tua não seria também a minha casa

para a qual buscámos tábuas, parafusos e esperas,

muitas esperas.


Perdeste-me

e nem notei.