Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, junho 22, 2006

CRÓNICA INTEMPORAL - I






A MEMÓRIA DOS CHEIROS

Madeira, carvão e dor de ouvidos



Uma das mais vivas memórias que guardo da infância e da adolescência é a dos cheiros. Consigo facilmente vê-los hoje como os sentia então. Claro que sim, os cheiros têm cor! Um dos mais remotos é o dos brinquedos. Da madeira com que eram feitas umas pequenas peças com as quais eu e a minha irmã brincávamos no quarto do meio; o dos brinquedos como
depois se passou a chamar. Peças de madeira quadradas e rectangulares com papeís desenhados e coloridos colados na perfeição, identificando as que seriam portas ou janelas das casinhas e palácios que íamos construindo ao longo das tardes. Esse cheiro a madeira leva-me numa viagem para dentro dos meus olhos: numa das prateleiras do quarto havia sempre um aquário redondo. Com um peixe cor de laranja lá dentro que nadava incessantemente desenhando inúmeras circunferências.
Hoje entendo que o aquário era muito redondo e muito pequeno para aquele peixe que provavelmente morreria de problemas de coluna. Ou empanturrado de tanta comida apesar dos avisos da avó.
O do comboio persiste igualmente até hoje com um verde bem escuro.
As carruagens eram verdes e havia a primeira, a segunda e a terceira classe. A numeração era romana. Na primeira tinha um pauzinho. E na segunda e terceira os pauzinhos dourados iam aumentando. As carruagens eram iguais às do comboio eléctrico que o Arturinho recebera naquele Natal em que estive doente. Abauladas e com janelas de cair. Aquele cheiro fazia-me imaginar grandes viagens para sítios maravilhosos.
Mesmo que, afinal, o destino fosse sempre o mesmo: Ferreira do Zêzere. Férias com a tia Emília na pensão do Senhor Xico.
Durante anos chorava na primeira noite pela minha mãe, pelos meus irmãos, enfim, saudades de casa. E passados mais alguns dias as saudades reacendiam-se com as já famosas dores de ouvidos seguidas de tremendas otites próprias da idade. Mas as viagens imaginadas continuavam a ser para sítios maravilhosos. Mal começava a aspirar as primeiras emanações do carvão entrava imediatamente no mundo misterioso para mim do fim da linha. Ainda hoje, o recordar aquele cheiro, fantasia viagens que não fiz.