Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, junho 29, 2006


UTOPIA PREVENTIVA



Passou-me o braço pelos ombros num abraço meigo e forte.
Tinha olhos tão claros que mais pareciam espelhos.

Disse-me: “Minha querida, não queiras ser como eu, não me tomes por modelo...talvez...exemplo, referência...Mas é melhor quereres ser como tu, seguir exactamente o que tu és, o teu “projecto”, a tua “possibilidade".

Fiz uma careta de espanto.

“Poderei ser uma luzinha ao fundo do teu tunel nas noites más ou nas bermas das tuas estradas, assim como outras pessoas que irás conhecendo, mas serás melhor pessoa se fores tu, sem tentares seguir o meu ou outro modelo, entendes?”- perguntou-me em tom de resposta.

Continuava a sua tranquilidade que tanto me confundia ao mesmo tempo que me trazia aquela paz que tanto necessitava como reconhecimento da sua existência: “Acredito que para cada pessoa existe um sonho que nasce no mesmo dia e à mesma hora que elas. E esse sonho também é feito por Deus. É só e simplesmente um sonho, um projecto. É uma possibilidade. Só temos de tentar viver essa possibilidade. O melhor e da melhor maneira que soubermos. Isso é a vida. Complicamos, sei que não é fácil, mas é simplesmente isto. E já é um grande trabalho!"- disse ao mesmo tempo que se deixava sorrir. E o sorriso levou-a para bem longe.

Helena estremeceu e senti o frio percorrê-la. Perguntei-lhe se estava bem. Os seus olhos tinham-se cerrado para voltarem a abrir-se num azul ainda mais calmo.
“Estou bem, sim. Pensava no meu sonho…na possibilidade que tentei viver nem sempre conscientemente. Só a partir de certa etapa comecei a perceber que viver seria tentar essa possibilidade que ligava irremediavelmente o sonho à minha vida.”

- E qual foi? Como foi?”- perguntei-lhe como se fosse criança e quisesse saber o fim da história, aconchegando-me nas suas mãos de mel.

“- Mesmo que não entendas agora o que te vou contar não inventarei príncipes que nunca chegam, nem castelos de fadas só sonhadas, nem muralhas intransponíveis. Falar-te-ei de angústia. Angústias que fazem, essas sim, a diferença.
Quantos sonhos, quantas lutas, quantos caminhos percorridos a andar ou a correr!
Sonhos. Quem já não tem sonhos ou nunca os teve não se angustia ou nunca sentiu esse ardor a comer-lhe as entranhas. Sabes, sempre vivi com angústia, com um desassossego malvado que nunca me deu tréguas. E como eu outros estão deste mesmo lado”- acrescentou.

“Vivemos com angústias exactamente porque sonhamos, porque sentimos que há tanto para mudar, que há que mudar, que há tanto de errado em tanta coisa e sonhamos. Sonhamos sempre. Sonhamos que, de alguma forma, o que não está bem mudará um dia. Essa é a diferença. Entre gente pequenina, que pensa e sente pequenino e pessoas onde a angústia sulcou as estradas da compreensão e do sonho.“

“- ... Utopia?”- perguntei com medo de não ter entendido.

“-Exactamente Mariana! Vivemos com angústia desde que nos lembramos que somos gente. Pela simples razão que continuamos a necessitar de pensar e projectar utopias, mesmo sabendo-as utopias. E este aparente pequeno nada paradoxal é que nos torna diferentes: uns de um lado e os outros lá ao fundo, bem longe por nunca terem realmente sonhado.
É esta a diferença entre as pessoas. Não são melhores umas e piores outras: somente diferentes, tremendamente diferentes apesar de mais felizes e menos angustiadas.”

Tornou a elevar os olhos até encontrar os meus : “Nunca deixes fugir a angústia Mariana!”