Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

segunda-feira, outubro 08, 2007

S O L I D Ã O



Olhos vazios de cor e de esperança. Corpos sem contornos, ossos despidos com um resto de vida caída, enroscados pelos cantos onde pensam encontrar algum conforto.
Escondidos do que não querem viver e da espera que já vai sendo mais longa que eles soltam, com voz trémula, palavras sem sentido dum passado onde só eles vivem.
Meu Deus, que sofrimento desmesurado sem consciência do que dói ou do que ficará por contar nesta espera de corpos engavetados em quartos brancos, sozinhos com as recordações do que já não conseguem saber.
Camas postas lado a lado como se de noivos se tratassem. Noivos numa valsa lentificada com odor a urina e a morte.
Esgares emitando sorrisos quando passo e aceno como se nos conhecessemos há muito.

Habituei-me a sorrir e a balbuciar qualquer coisa sempre que percorro aqueles corredores infinitos de tamanho e de tristeza. Tanto faz! Quaisquer palavras servem à avidez de ser eu a filha, a neta, a mulher, a amante, a sogra ou simplesmente a assistente social que lhes dê atenção ou esperança de ainda estarem a tempo de não ficarem sós e por ali.

Tento olhar sem ver para não ter de reproduzir vezes sem conta esta emoção de marcas cheia. Mas quem pode não ver?

Solidão, a enorme doença de tanta gente, adensa-se com os anos que passam. Histórias em que não se pode acreditar por decência: um irmão que deu a irmã como morta para ficar com a casa e os seus haveres. Um filho que não mais visitou a mãe deixando-a a gritar por ele durante meses a fio até a demência se ter instalado no lugar do desgosto.

Corpos desligados das cabeças, nos quais as feridas, o sangue e as dores já não se sentem. Já só existem para quem, como eu, os vê de fora. Para quem, como eu, não queria estar tão perto de esperas tapadas com lençóis brancos, em camas pequenas e nuas, caras sem nomes, iguais, sem cor, sem réstea de esperança e sem visitas.

Alguém grita de forma repetida e enlouquecida, mas já não incomoda ninguém. Só eu oiço realmente a loucura gritando repetidamente os mesmos sons. Marcas do tempo e marcas da morte em solidão.
A solidão é o castigo para quem morre velho e lentamente.


Peguei-lhe na mão. Cabeça rapada, olhos tão enterrados nos restos do rosto que mais pareciam água, lábios enrugados metidos para o sítio onde um dia existiram dentes. A língua saiu-lhe para fora da boca tentando pronunciar algo.
Adriana era o seu nome. Morreu esta tarde só comigo a seu lado e o resto das noivas da morte, todas vestidas de branco, que ainda lá ficaram.
Calma, muito calma, tentava levantar a cabeça de vez em quando e abria muito os olhos tentando ver…o quê? Não sei. A mim não me viu certamente. Sei que sentia a minha mão agarrando-a para que não a deixasse até adormecer. E adormeceu.

“- Era uma mulher muito bonita, sabe? Está no lar há mais de 20 anos e aqui na enfermaria há 3. Tem quase 95 anos se fizermos fé na cédula. Era muito bonita, a D.Adriana. Teve um filho de um senhor importante...parece que muito conhecido…levou-lhe o filho, não o perfilhou mas levou-lho. A partir daí teve muitos amores, era muito linda, era! Mas não queria tê-los muito tempo. Não confiava. Nunca mais confiou em nenhum, ao que consta. O filho ainda aqui veio umas duas vezes. Depois nunca mais o vimos... deixou de mandar ajudas como antigamente. A partir de certa altura a pensão dela era integralmente entregue ao lar. Passámos a ser a família dela. Boa ou má, fraca ou forte.”- ia contando a empregada auxiliar enquanto mudava as camas.

Há dias piores que outros, nos quais as sombras passam por ali como asas negras que batem nas esquinas da dor. Naquela tarde não tinha mais ânimo para não me deixar abater: gemidos sem fim, torturas de quem já não encontra a porta de saída, esperas com um fim anunciado e pleno de solidão.

Indescritível. Indecifrável. Incompreensível.

Nas mesas de cabeceira…nada. Nunca está nada.
A um canto, ao lado da única cama impecavelmente feita, reparo em três molduras numa das mesinhas de cabeceira. Fotografias a preto e branco. Retocadas e expressivas. Ela numa, ele noutra e os dois na terceira.
Ela partiu já há uns dias, disse-me a enfermeira. Não sabem a quem entregar as fotografias, pois ninguém as reclamou nem ao corpo!

“- As fotografias era para ela não se enganar quando chegasse ao céu. Tinha receio de não o reconhecer, dizia !” - continuou a enfermeira com um sorriso carinhoso. “- Antigamente ainda existiam histórias de amor, sabe?”- continuou olhando-me nos olhos como se quisesse falar da vida.

Caíra já a noite e não deveria ali estar. Ainda não fazia parte daquela história. Não reconheceria bem os andamentos e as deixas daquelas danças nocturnas.
A noite trazia novos ecos e novos encontros. Também ali bem como fora daquele inferno.
A noite, os fantasmas, as sombras e o eterno pesadelo de poderem ter partido sem saber.


Levantei-me e comecei a percorrer o corredor de volta para a porta. As portas das salas repetiam-se à esquerda e à direita, iguais, sempre iguais, com o mesmo cenário lá dentro.
O cheiro causava-me náuseas.
Aquele odor parecia vir de uma imensa panela ao lume que ia libertando vapor com cheiro a urina e a peixe podre. O chão parecia resvalar para dentro dos sorrisos tristes agarrados a bengalas e andarilhos. Mãos que me iam agarrando nesta corrida querendo agarrar a réstia de vida que lhes foge todos os dias.
Finalmente cheguei ao fim do corredor e abri a porta para a rua. Foi como se me libertasse do fundo do mar e finalmente deixasse entrar de novo ar nos pulmões .
Respirar fundo para sobreviver ao desmaio que avançava a passos largos vergando-me sobre o estômago.

Sentei-me no degrau de cabeça entre os joelhos, com as mãos na cara gelada, percorrida por suores frios e mãos de velhos.
Desatou-se um pranto dentro dos meus olhos e do meu peito apertado por aquele convento de fantasmas gritantes. Inevitável não pensar em nós.
O enjoo e a certeza da inevitabilidade sacodem-me as entranhas e não acalmam o pranto.

Com a mão alcanço a relva fresca e húmida trazendo-me novamente calma e força para voltar a passar aquela porta.