Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, abril 15, 2015



 A TUA CIDADE 


  
Vou contar-te uma história que faz parte da nossa. Nunca cheguei a dizer-te. Não achei importante. E o fazer as pazes era sempre tão apaixonadamente forte que as palavras se esqueciam de falar.
Mesmo sem estares a meu lado, mas ainda contigo no coração, fui à tua cidade no fim-de-semana.

Estranho não teres estado comigo na cidade que tão bem me habituei a conhecer através do sentido que davas aos teus sentidos.

Descobri o toque irreal que os sítios e as coisas tinham quando estavas comigo, descobrindo o seu sentido de um modo mais solitário. E perguntei por que razão nos tínhamos chateado...não conseguia saber ao certo.

Os sítios seriam, certamente, os mesmos; os sabores e as temperaturas dos lugares também. Os cheiros e os aromas, o chilrear dos pássaros ao anoitecer e o som enovelado das rolas nos pinheiros estavam lá todos. Mas até os pássaros chilrearam de forma diferente. Ou seriam os ouvidos do coração que eram outros?

Fui ao talho onde costumávamos comprar os bifes, passei na Bertrand onde encomendávamos os livros, sentei-me no café da Fnac depois de namorar por ti os livros e os cds.

Comprei os croissants do costume, cheios de açúcar por cima, na pastelaria do teu bairro. Comi por ti os doces que tanto gostavas e sentei-me a ver ao longe o mar, com um manto verde aos pés, feito de arbustos e plantas verdes que só aquele sítio da tua cidade tem.

Por fim, ao anoitecer, os pássaros começaram a costumada barulheira nas árvores vizinhas à tua casa.

Recordo-me que um dia, perante a minha interrogação de tal fenómeno, inventaste que eles faziam tanto barulho por se debaterem ferozmente pelo melhor ramo de árvore para pernoitar. Ri-me e fingi que acreditei.


Deste-me a mesma explicação quando na Galiza, num dia quentíssimo de verão ao cair da tarde, estávamos sentados num dos claustros de um parador e, de um momento para o outro, os pássaros começaram a mesmíssima barulheira.


Rimos com essa história e com o vinho verde que escorregava pela garganta. Ali ficámos a olhar a copa das árvores vendo o esvoaçar mágico de tanta passarada! Ainda assim, não acreditei totalmente na tua explicação! Fingi só para te fazer feliz.

Hoje acredito que os pássaros fazem aquela algazarra toda ao fim do dia, seja Verão ou seja Inverno, guerreando por um melhor ramo para passar a noite e para namorar.



Naquele fim-de-semana, nas árvores ao pé de tua casa os passaritos fizeram o mesmo barulho de sempre.

Mas não bati à tua porta. Um fim é sempre mais um.

Há fins infinitos dentro de outros fins. O fim da semana, o fim da vida, o fim do turno. O fim de um gelado e o fim dum projecto. Dos amores e dos desamores também. O fim do mundo. Fim é a palavra certa para nos dizer que estamos vivos.

Que há curtos fins de compridas histórias com fins felizes e desfechos com lágrimas. Os fins levam as pessoas a começarem coisas. A teimarem em amar-se outra vez. A empreenderem viagens novas com fins já sabidos ou calculados à partida, com a chegada ao fim.


Só dias mais tarde te abri a porta quando foste ter a minha casa.