Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sábado, novembro 08, 2008

DONA...?




“- Bom dia Dona...”.
Automaticamente devolvi os votos de bom dia antes mesmo de me aperceber de quem vinham. Tinha acabado de sair de casa e de dar a volta à chave. Ainda no patamar da escada fiquei a olhar para o cimo dos degraus de onde tinham soado as palavras.
O prédio anda em obras há mais de um mês, mas como saio cedo de casa e regresso perto do anoitecer nunca me tinha cruzado com ninguém. Estou a mentir, sem querer...a minha memória já não é o que era!
Recordo que um dia, ao descer a escada, deparei-me com um escadote no patamar do segundo andar. Um rapaz novo de pele escura como breu estava escarranchado nele com uma trincha na mão. A tinta branca ia pingando para o chão, pingo a pingo, enquanto olhava para mim boquiaberto. Não se mexia apesar de ser óbvio que eu não conseguiria passar caso não se movesse dali.
Expliquei-lhe que queria descer as escadas. Lentamente e sem nada dizer foi descendo os degraus do escadote, arredando-o para um dos lados, sujando de tinta o corrimão da escada.
Depois desse dia nunca mais vi ninguém a pintar ou a restaurar a escada do prédio, embora o cheiro e o lixo demonstrassem que ainda por ali andavam.

“- A Dona desculpe, queria pedir se tinha roupa velha. Vem aí o frio e não tenho roupa quente. Se a Dona tiver eu agradeço.”

Fiquei a olhar para ele tocada pela simplicidade do pedido e pelo seu pedido frontal mas humilde. Um pouco à moda do colonialismo, como se a senhora branca fosse patroa e benfeitora.
Aquele homem já de idade, vindo de um país onde o calor e o sol ajudam quem não tem roupa para se cobrir, com a pele escura e lábios negros e grossos, apontava-me os seus olhos grandes e tristonhos, como se não esperassem grande coisa da vida.

“- Sim... acho que o meu filho tem roupa que já não lhe serve. Vou falar com ele e amanhã ou depois deixarei aqui na escada.... Aqui à minha porta, está bem? Saio cedo, não devo encontrá-lo.” - respondi.

“- Muito obrigado Dona...sim, pode deixar aí ou eu venho mais cedo e vejo-a. Vou estar aqui até terça-feira. Só vou embora depois.”

Desci a escada sentindo a doçura daquele homem. O seu pedido de ajuda e a maneira gentil como o fez, ao contrário de tantas outras pessoas por quem somos agredidos diariamente, aqueceu-me num dia mais frio do que o costume.

O que teria sido a vida daquele homem? Como teria chegado a Portugal? Porque veio para cá? O que teria já passado? A forma como falou, os seus modos, a sua educação fizeram a diferença.

São seis da tarde e ainda me recordo dele.