Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, novembro 13, 2008

HISTÓRIAS DO JOÃO

14 anos


“- Mãe, estou confuso...sabes o que queria mesmo, mesmo ?...Era “descer” um ou dois pontos na idade!” – exclamou o meu filho quando começámos a conversa acerca do Natal.

O João costuma sentar-se numa das cadeiras da cozinha durante as minhas deambulações entre o frigorífico o fogão e o lava-loiças preparando o nosso jantar. É um ritual diário que já faz parte do nosso quotidiano.
Mas esta história vinha já desde a hora em que cheguei a casa, cerca das 20 horas: em cima da secretária dele estavam uns desenhos com coroas reais impressos em papel branco. Coroas usadas pelos reis, redondinhas e bonitas em tons de azul entrelaçando-se e identificando o seu apelido.
Para o João o apelido é muito importante, não que seja de famílias com brasões ou realezas, ou até endinheiradas, mas é através dele que se identifica com o pai e se sente a pertencer ao homem que mais ama no mundo.

“-Que engraçadas que são estas coroas, João! Para que são? Para algum trabalho?”- perguntei-lhe.

“- Gosta? São bué, não são? São para personalizar o portátil. Já combinei com o pai e ele pode mandar pintar nas costas do portátil o que eu quiser. Ele diz que faz...não sei bem se faz ou não, mas disse. Vamos ver!”- disse-me entusiasmado.

“- Mas que portátil?”- perguntei-lhe fazendo-me de parva, pois o pai já me tinha falado em oferecermos “a meias” um portátil ao miúdo no Natal.
“- Para que queres tu um portátil?”- insisti.

A partir daquele instante instalou-se o caos e a desordem naquela cabecinha. Os olhos deixaram de brilhar e ficou pasmado a olhar para mim.

“- Então, Jonas...tens o Compaq velho que a mãe te deu. Como está com problemas estava a pensar mandá-lo para arranjar.”- disse-lhe pressionando uma reacção.

Estava à espera que a resposta fosse a normal para um adolescente da idade dele: “que chatice ficar outra vez com o PC velho e todo “fanado”; que já tinha combinado com o pai e que mais isto e que mais aquilo.”


Mas não, mais uma vez o miúdo surpreendeu-me e ficou com a confusão estampada na cara, calado e pensantivo.

Fui para a cozinha preparar o jantar. Invariavelmente lá estava ele sentado na cadeira da cozinha passados minutos.

“- Tem razão, Mãe, eu não sei bem se devo ou não querer o portátil!”- começou“ tenho medo de pedir isso e depois como o pai disse que tem de ser só até 400 euros a máquina ser fraca e estragar-se logo...e vocês gastaram dinheiro para nada...e se esperarem até para o ano e comprarem um melhor, com mais memória e com o processador de confiança para não se estragar ?”- perguntou-me tentando ordenar as próprias ideias.

“- Não sei, João, mas é uma ideia. E o que querias como prenda de Natal?”- perguntei-lhe.

“- Eu sei lá, mãe...eu queria mesmo era descer um ou dois pontos na idade...e ter aquela muralha enorme de brinquedos à minha frente. Lembra-se? Eu lembro-me tão bem! Rasgava papel e mais papel e tinha uma muralha enorme de prendas para abrir. Era tão bom...e não tinha que ter estas decisões de hoje. Não tinha de pensar entre o que eu quero e o que é mais ou menos correcto. Antes eu queria e pronto, não tinha de estar a pensar se vocês iam gastar muito dinheiro ou não, se era preciso aquilo ou não, queria e pronto! Tinha aqueles folhetos do Toys R’us e ia fazendo cruzinhas até ao dia de Natal!- continuou a pensar alto tentando desabafar os seus próprios desalentos.

“- Isso chama-se crescer, será?”- disse-lhe metendo a minha colherada naquela caldeirada de emoções.

“- Se é não gosto nada! Estou confuso, mãe, desconfortável e baralhado. Sinto a falta de alguma coisa aqui dentro. Sinto que me falta alguma coisa cá dentro e não sei o quê.... falta-me aquela muralha de brinquedos para abrir, com toda a gente a dar-me prendas bonitas e aquela forma de me sentir quando rasgava os papeis...agora já sei que as prendas são as meias das tias e os boxeurs dos primos, os albuns de fotografias da Tia Alice; a camisola do Benfica porque combinei com o tio Carlos e, se quero ter um jogo para a Playstation vou ter de regatear muito bem com o tio Telmo... Ah, livros também já sei que me vão dar porque tenho de ler muito, não é ?”- continuava a falar enquanto o arroz cozia e os bifes iam fritando.
Fui rindo à medida que ele falava para aligeirar o incómodo que sabia estar a importuná-lo e fazê-lo sentir-se desconfortável, revoltado e confuso.
Também se ria, reacção própria do seu bom feitio, ao mesmoo tempo que agarrava numa colher de pau e ia batendo com ela na mesa, cadeiras, pernas, etc, acompanhando o seu discurso como se regesse uma orquestra e tivesse de manter a coordenação dos vários instrumentos.

“- Não sei, mãe, não sei o que dizer, o que sentir e o que pedir. Se peço um telemóvel como o anterior já sei que é para mo roubarem. Mês sim, mês não sou assaltado. Iphones e essas coisas também é para roubarem, não vale a pena. O portátil era mais para eu ter uma coisa minha desde o início onde eu teria as minhas coisas, as minhas fotos, os meus filmes, mas desde o zero. Mas não sei se valerá a pena. “- continuou – “ eu sei lá, nem sei se o pai consegue fazer aquilo que prometeu, a pintura personalizada.”

“- O jantar está quase pronto, pões a mesa?”- pedi-lhe sorrindo ao perceber que o meu filho estava a pensar acerca das coisas que se passam à sua volta, acerca do que quer e do que é ou não possível querer, sobre a oportunidade das coisas e sobre o esforço que os pais fazem por ele.

À hora de se deitar deu-me um beijo e perguntou: “ – Mãe, vem falar comigo um bocadinho ?”
“-Já lá vou. Não te esqueças de lavar os dentes”-disse-lhe fazendo o meu papel de mãe.

Entrei no quarto do João, sentei-me na cama dele e passei-lhe a mão pelos cabelos. Fiz-lhe festas na cabeça. Começou a falar cada vez mais pausadamente até que quando estava quase a adormecer me disse o quanto gostava de voltar a ter menos idade.

Crescer dói e é desconfortável. Lembram-se?