Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sábado, maio 26, 2012

CARTA DE AMOR


São oito horas da manhã de um Agosto em 91. Como eu, a União Soviética vive momentos de grande angústia.
Quem me dera que tu, à semelhança dos nossos políticos, regressasses a Lisboa, procurando acompanhar esta crise de cor universal e desfecho incerto.
Também tu, como eles, não serias capaz de a resolver, mas sentirias de perto a sua verdadeira dimensão: bastaria um olhar, um beijo, uma carícia.
Esta noite a revolução dos meus sentidos não me deixou dormir.
Recuso-me a lutar contra uma cama cada vez mais quente, mais incómoda, mais desalinhada. Às cinco da manhã desisto. Vou para a rua espreitar os reflexos dormentes dos armazéns espraiados pela beira rio.
Por momentos imagino aí a nossa casa. Uma enorme nave caiada de tijolos, cheirando a histórias antigas, disfarçando mal velhos segredos.
Uma nave de quatro paredes, incapaz de esconder os gestos diários e sem cerimónia de quem a habita.
Encostada a uma das paredes, uma enorme cama ganha a importância de um altar feito de oferendas e rituais quase religiosos.
Felizmente esta noite choveu. Os perfumes da terra molhada trazem prazeres de Outono a esta estranha manhã de Agosto.
No Cais do Sodré, junto à estação sente-se o movimento de outras épocas. Parece que só eu acordei para um dia normal sem nunca ter realmente chegado a dormir. O tempo tem outra dimensão. Os minutos teimam em não passar.
O sol, e o que resta da chuva, descobrem nas apertadas igrejas do Chiado belezas efémeras que o calor rapidamente apagará.
Hoje Lisboa acordou sem mágoa, sem o rio triste e sem pecado.
Na Bénard encontro a tua mesa vazia. Ainda bem! Apetecia-me sentar aqui e escrever. Neste lugar. No teu lugar.
Quem me dera acreditar em ti, mas raramente o consigo. Desconfio sempre. Acho que me mentes. No máximo, consigo imaginar que nem tu sabes se esta mentira não tem já um pouco de verdade.
Só consigo pensar quando me abraças e eu perco a razão.
Só acredito quando não acredito como é bom o amor que me fazes.
Na mesa ao lado sentou-se o meu antigo professor de Filosofia.
Não me reconheceu.
Está mais velho, mais triste, mais cansado. Provavelmente se me tivesse reconhecido pensaria o mesmo de mim.
"Aquilo que vos vou ensinar são apenas migalhinhas do meu saber".
Quem me dera que o Migalhas, como era conhecido, leccionasse a minha vida. Neste momento estaria a terminar um capítulo. Chumbaria num estranho teste americano e prometeria a mim mesmo que no próximo período compensaria as poucas notas em afectividade, amor e coragem com uma dedicação imensa a este curso complicado, sem quadro de honra, sem compensações visíveis, sem alegrias.
Não sei o que fazer. Por favor, ajuda-me.
Deixa-me copiar. Vem estudar comigo à noite. Faz-me os trabalhos de casa e, acima de tudo, ama-me.