Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

segunda-feira, janeiro 09, 2006



NEM POR FARSA, NEM POR PRAZER


Sempre soube, pelo cantar da cotovia e pelo soar dos seus passos na escada que ele não tornaria a vir. Nem sequer de madrugada. Nem naquela, nem nesta nem nas próximas.
Sempre soube que mentia sem prazer e sem querer.

Sabia ler nos espelhos dos quartos onde nos amávamos que a nossa era uma história sem História.

Sempre o soube, sentindo o coração cantar-me numa balada triste, contando que o meu sentimento correria borda fora como o correr de um rio quando a sua sede secasse.

Sempre soube que mais não era que o sal da sua boca, dissolvendo-me mais e mais cada vez que me comia os lábios avermelhados.

As cotovias, as fontes, os rios, os corações, os olhos, as mãos e as gentes sempre souberam o quanto valia aquele amor e o quanto era frágil de tanto ser.

Sabia já que o sofrimento faria par comigo nas frias madrugadas de adeus.
E que a solidão seria a substituta companheira que me aqueceria as pernas quando na cama deitada acariciaria as coxas fingindo-me, imitando-o.
Inventando o insuportavelmente inexistente.

Sabia o que era sem mim e bem o que fui sem ele.
Só ainda não sei o que é para mim ele não saber o que eu sou agora.

Eu soube, pelo cantar da cotovia que ele não viria.
Soube pelo que li nos espelhos dos quartos que não voltaria para os braços redondos de quem ama.
O coração contou-me triste e só como só ele pode ser como seriam as frias e longas madrugadas.

Sempre soube que o meu amor, na sua boca, mais não era que um sal dissolvendo-se mais e mais a cada dentada de vida vivida nas horas roubadas aos dias.
E aos meus lábios vermelhos.

E os olhos? Como os olhos me souberam dizer que não esperasse.
Não quis vê-los.
Fechei-os e abri os braços onde cantavam as cotovias, gelavam as madrugadas, amadureciam os lábios acariciavam-se as despedidas e aprendiam-se a fazer pares.

Já sabia que o sofrimento faria par comigo nas frias madrugadas do adeus. E que a solidão seria a minha companheira tentando inventar o insuportavelmente inexistente.

Do que estava eu à espera, então?