Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, setembro 29, 2006

FOI ASSIM... ( I)





Dizem os sábios que recordar é viver. Será? Não sei. Recordar é uma capacidade que temos de viver a mesma coisa várias vezes ao longo da vida, mas nunca da mesma forma como quando realmente a vivenciámos.
Nada volta a ser igual. Nada se repete realmente na nossa vida. Só a natureza se repete incessante, dando ilusões de que tudo pode voltar a ser.
Recordando não vivemos da mesma maneira o que já se viveu um dia. Recordar é assim como viver mas à distância.
Revemos as situações como se estivéssemos debaixo de água. Em câmara lenta. Mergulhados numa espécie de silêncio com um tempo demorado que não inquieta por sabermos o seu termo e desfecho.
Era o dia do seu aniversário. Mariana fazia 41 anos e não se sentia muito confortável com a ideia.
Estranhou aquela manhã lá em casa: ninguém tinha tido qualquer atenção especial para com ela. Nem o seu filho mais novo tinha vindo pela mão de Sebastião abraçá-la afirmando que ela era a melhor mãe do mundo.

Recordou o início do dia: a manhã tinha sido terrível pois estavam todos atrasados. Sebastião apressado para ir pôr o miúdo à escola; a sua filha mais velha com um exame na faculdade e sem tempo útil para chegar a horas. Ana sem conseguir pôr o carro a trabalhar pedindo-lhe que lhe emprestasse o dela. Enfim, não tinha sido uma manhã fácil para a família. O resto do dia tinha corrido sem incidentes ou surpresas. Recebera as rosas vermelhas ansiosamente esperadas com um bilhete que a fizera sorrir.
Mariana relembrou sua mãe que certamente lhe teria telefonado bem cedo com um alegre “parabéns minha querida”, se não tivesse já partido para sempre.
O seu irmão iria esquecer-se da data e, talvez lá para o Verão, quando se encontrassem na casa de praia, as desculpas seguir-se-iam aos abraços.

Era Janeiro e, por isso, anoitecia muito cedo.
O Inverno estava instalado até aos ossos e o melhor era conseguir chegar a casa e meter-se nas peúgas de lã e no pijama quentinho.
Naquele fim de tarde seria o melhor presente que poderia querer.
Finalmente chegou a casa depois de enfrentar um trânsito medonho e aquela chuva que não parara todo o dia.
Mariana nem esperou pelo elevador e subiu as escadas até casa. Abriu a porta do apartamento e tudo estava estranhamente escurecido e silencioso. Assustou-se pensando no filho mais pequeno - onde estaria àquela hora se não em casa? O que teria acontecido?
O silêncio era igualmente inquietante. Faltava o barulho normal de uma casa, ainda por cima com crianças.
Tentou acender a luz do hall mas não havia corrente eléctrica. Tudo continuou estranhamente igual.
Chamou timidamente o nome do filho. Nada. Tornou a chamar. Chamou pelo companheiro um pouco mais explicitamente. Resolveu entrar fechando a porta atrás de si.

Deu meia volta para entrar no corredor e deparou-se com inúmeras pequenas velinhas acesas alinhadas que iam até ao quarto.
Caminhou até o alcançar e quando abriu a porta lá estavam um sem número de candelabros com velas acesas. Umas grandes, outras pequenas, umas com cores garridas, outras quase translúcidas. As chamas eram tantas que mal conseguia distingui-las umas das outras.
E as vozes fizeram-se ouvir ao mesmo tempo que vários vultos saíam apressados de dentro dos armários, debaixo da cama e por detrás dos cortinados.
“Parabéns a você...desta data querida...!”

O som das palmas ecoavam na cabeça de Mariana enquanto recebia inúmeros abraços e beijos.
Estava feliz mas meio atordoada esperando que as luzes se acendessem.

“- Não, não Mãe!! Não se podem acender as luzes!”- disse-lhe o seu pequenito saltitando à sua volta.
“- Tens de apagar as velas todas porque são o número dos teus anos!”- continuou enquanto lhe puxava pela mão levando-a até às chamas mais próximas.

Naquela noite Mariana nem sequer conseguiu ter fôlego para fumar o seu habitual cigarro antes de dormir. Tinha valido bem a pena apagar 41 velas acesas espalhadas pela casa toda. A surpresa tinha sido tão inesperada quanto gratificante!