Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

APRENDER A CONFIAR ( I )



Olhei pela janela da sala. O quintal continuava bonito, florido e a laranjeira continuava a dar laranjas. Afinal, as miúdas tinham continuado a cuidar da casa e do jardim.
A luz que entrava pela janela continuava especial, como lhe chamavas, com tonalidades arroxeadas ou alaranjadas ou até mesmo aniladas conforme a altura do ano, projectando um eterno bailado de sombras nas paredes e na mobília. Às vezes, parecia que tínhamos teatros de sombras dentro de casa com figuras fantasmagóricas ou perfeitamente reais e curriqueiras num desenrolar de movimentos sincopados.
Quantas horas passámos olhando-as e imaginando personagens das histórias que íamos inventando conforme a altura do ano nos ia deixando mais ou menos nostálgicos.

A porta ao fundo do corredor continuava fechada desde que tinhas partido.
As paredes, cobertas de obras tuas e de amigos nossos pareceram-me sempre enormes desde que partiste. Raríssimas foram as vezes em que tornei a entrar no teu atelier.
Era um salão grande que deitava para o quintal das traseiras.
O cheiro a tinta, a tela rasgada, a cola, a acrílico, a óleo de linhaça, a terbentina e a outros materiais similares tinha-se entranhado de tal modo nas paredes e na memória que ao abrir a porta era sempre muito fácil tornar a ver-te a trabalhar no meio de uma total desarrumação.
Como sempre, certamente te encontraria semi-nu, sem camisa, com as mãos, braços e tronco sujos de tinta, cola e completamente molhados de água e de suor.
Abri a porta de mansinho na esperança de não assustar a tua possível presença.
O copo de whiskey ainda lá continuava e a garrafa também, praticamente vazia.
Não lhes toquei. Aliás como nunca o fazia anteriormente.

Sempre a deambular com o copo na mão, de lá para cá e de cá para lá vinhas do atelier e chegavas com ele até à sala ou ao quarto onde, a maior parte dos dias, já dormia ou estava muito enroscada nos edredons da nossa cama.
Por vezes, quando queria levar o copo para lavar pedias-me para não o fazer.

“-Ele também ainda não sabe pintar...tal como eu. Ainda estamos a meio do caminho. Se o lavares ou se me trouxeres outro partirá novamente do zero”-costumavas dizer-me sorrindo com os olhos.

Achava-te graça, sempre com a eterna humildade de aprendiz por mais reconhecido e aceite que já fosses.
Nunca entendi se essa tua maneira de não ser vaidoso em relação à tua obra se devia ao facto dos artistas plásticos em Portugal nunca serem acarinhados, reconhecidos e incentivados ou se era por achares mesmo que ainda não tinhas alcançado o patamar que acharias necessário para te considerares um artista com obra de destaque.

“- Andei mais de quarenta anos a comer batata cozida para conseguir construir uma carreira de respeito e deparo-me diariamente com uns quantos artistóides que se passeiam pelos bares do Bairro Alto com representações esotéricas, sem qualquer tipo de linguagem e percurso coerente, expondo em colectivas nos hotéis e nos restaurantes da moda...francamente, este país está cada vez pior!”- muitas vezes barafustaste nas conversas com os teus colegas que nos visitavam ou iam a nossa casa jantar.

Invariavelmente as vossas conversas acabavam sempre no mesmo tema e lembro-me de uma frase tornada célebre entre vocês: “- Então, pá? Vendeste alguma coisa na exposição? Não? Pois, pois é, então não sei como é?! Claro que sei! Eu também não. Em Portugal é mesmo assim. Deixa lá, estamos a trabalhar para a Fundação! Ah,ah,ah...!”.

“- Fundação? Mas afinal que fundação?”- perguntei uma das várias vezes que vos ouvi falar disso.

“_ A que vais fazer quando eu morrer!!! Tu e o resto das viúvas de todos nós!Ah, ah, ah!”- respondeste com aquelas gargalhadas cheias como só tu sabias soltar.

“- Que disparate Miguel...! Acabem lá com esses disparates! Mário devias pôr juízo na cabeça dos teus amigos...já nada te digo a ti António porque consegues ser ainda mais corrosivo e escatológico que o Miguel!- disse-lhes tentando sacudir idéias desagradavéis.

A tua prensa de gravura também ali continuava, enorme, silenciosa e queda. Inúmeras chapas ainda espalhadas pelas mesas, algumas encostadas ao lado da mesa de tintagem, testemunhavam longos anos de trabalho. Várias exposições, prémios, representações no estrangeiro e peças espalhadas em colecções portuguesas.

Depois de alguns anos de impasse e indecisão resolvemos a nossa definitiva mudança para Paris essencialmente por causa da tua carreira.
Claro que Paris também sempre nos apaixonara por ser a cidade onde tudo acontecia. Respirava-se cultura em Paris. As pessoas eram mais civilizadas e cultas que em Lisboa, tudo parecia bem mais ordenado, arranjado, bonito...humano.
Qualquer iniciativa parecia possível em Paris, desde que não fosse desprovida de sentido. A mentalidade bem diferente da portuguesa. Pessoas muito mais abertas, sensíveis e viradas para a vida e para o mundo.
Quantos não foram os jantares com colegas e amigos que inevitavelmente acabaram no teu atelier, prolongando-se pela madrugada. Muitas vezes acabava por me ir deitar antes de todos saírem. Eram todos muito mais teimosos que a noite e espantavam o sono ao ponto de nem sequer demonstrarem qualquer sinal de cansaço.
Tu sempre foste ave nocturna, tal como a tua mãe me contou. A noite exercia em ti um fascínio medonho, capaz de fazer ciúmes à mulher mais desprendida.
Tu e a noite tinham um “affaire” infinito no tempo e no espaço, só desfeito pela chegada do sol.

Entrar no teu atelier era revisitar anos de uma vida em conjunto da qual ainda tecia lágrimas de saudade. Por isso fechei novamente a porta tão devagar como a abri.