Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, dezembro 21, 2006

ESFERAS ETERNAMENTE FEMININAS




Culpa? Mas que culpa?
Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Começa-se sempre pelo início e algo acontece. E vai acontecendo, desenrolando-se ou enrolando-se.
Há as pazes e as brigas. Os amores e os desamores. A confiança e o desmoronar das construções ora fortes como castelos ora frageís como penas.

Fisioterapeuta de profissão e de coração Filipa era uma rapariga alta, constituição óssea larga, mas muito torneada. Morena de pele e cor de cabelo, tinha os olhos pretos como azeitonas.
Desde cedo que a actividade física fizera parte do seu quotidiano. Passou pelo ballet quando menina, continuou na ginástica aplicada e foi no judo que conheceu o Paulo por quem se apaixonou.
Sem nunca ter coragem de reconhecer perante ele que sonhava com uma relação séria, com princípio, meio e fim, deixou-se levar por ele e pelo tempo só para não o perder.

Passados dois anos esse relacionamento não a fazia feliz, mas preenchia-lhe alguns momentos de felicidade roubados à vida que Paulo, esse sim, tinha para com ele e os outros.

Filipa engravidou e Paulo não aceitou que a gravidez fosse levada até ao fim. Insistiu para que Filipa fizesse um aborto, disse-lhe que iria estar sempre a seu lado e todas aquelas coisas que ela não queria ouvir. Só queria ter ouvido uma palavra, uma frase que afirmativamente lhe dissesse o quanto o faria feliz ter um filho dela.
Foram tempos difíceis aqueles. Lembro-me bem as vezes sem conta que o meu telefone tocou de madrugada. Do outro lado da linha Filipa lavada em lágrimas era o espelho da indecisão, do medo e da dúvida.

Sei que abortou e que a relação com o Paulo acabou, inevitavelmente. O seu desamor tinha sido mostrado em letras maiúsculas. Nem mesmo Filipa, e a sua obsessão por Paulo, podia continuar a fingir-se cega perante tal atitude.

O tempo foi passando e, apesar de morarmos bem perto, perdi-lhe o rasto.
Os postais de Natal vieram invariavelmente devolvidos durante dois anos. Tentei através de um número de telefone da mãe dela saber do seu paradeiro, mas a única pista foi-me dada, por acaso, um dia num supermercado de Lisboa.

Quase não o reconhecendo fiquei atrás de António na fila da charcutaria. António tinha sido colega da Filipa no instituto de fisioterapia. Tinham trabalhado juntos e sabia-os de algum modo íntimos durante algum tempo, enquanto o caso não chegou aos ouvidos da mulher dele.
António virou-se e sorriu.
“- Há quanto tempo! O que é feito de ti ?”- exclamou beijando-me.
“- Tudo bem. E contigo?” - perguntei.
Após breve troca de cortesias perguntei-lhe se sabia do paradeiro da Filipa.
Comecei, então, a ouvir contar uma história que, confesso, de início me pareceu pura invenção. Despedi-me e durante dias não me saiu da cabeça aquela confusão que ouvira em torno da vida da minha amiga.

De seguida, e já na posse de alguns elementos fundamentais, tornei a contactar a mãe dela e encontrámo-nos para tomar um café.

“- A Filipa ficou muito mal após o aborto, tu sabes!"- confessou-me baixinho, olhando tristemente para a chávena já vazia.
“- Sim, eu sei que aquele filho era desejado por ela. Ela amava muito o Paulo...desde miúda...mas ele nunca soube amá-la ou sequer entender o que estava a receber da parte dela!”- retorqui.
“- Pois. Teve uma depressão enorme e começou a emagrecer imenso, primeiro pela doença e depois por vontade própria...como se ela culpasse o seu corpo do desamor de Paulo. Sabes, são processos inconscientes, mas que estão dentro das pessoas e que são muito complicados de ultrapassar.”
“- Sim eu sei, mas por que razão ela se afastou ?”-
perguntei tentando entender.
“- De ti e de todos. Até de mim!”- disse entristecida.
“- Conheceu uma médica... a quem fez ginástica respiratória como fisioterapeuta que era e... olha, acabou por ficar a viver lá em casa dela! Deixou a casa e mudou-se definitivamente.”- disse aos repelões, como se quisesse afastar um mal que lhe acontecera.
“- Sim, que se mudou eu sei porque os postais que lhe mandei vieram sempre devolvidos!”- respondi ficando à espera de saber o que se passara com a minha amiga.
“- Foram as duas para França durante dois anos e agora vivem cá e lá. Estão bem as duas...sabes...percebes o que te digo, não?”- disse brincando com a colher dentro da chávena vazia, sem conseguir olhar para mim.
“- Sim, percebo, não tem mal algum...Gostam uma da outra, é isso? E por esse motivo afastaram-se de todos? Por medo que não aceitássemos a sua homosexualidade?...Que tontaria. Ninguém tem nada com isso. Elas têm de procurar a sua própria felicidade.”- acrescentei.


Passado cerca de um ano estava dentro do carro, parada no meio do trânsito desta cidade caótica que é Lisboa e vejo alguém que parecia a Filipa. O seu nariz adunco era inconfundível, mesmo que o corpo estivesse completamente diferente. Magro, sem vida e sem a sua habitual vivacidade.
Buzinei, apitei várias vezes, mas nada.

Estava loira. Loiríssima, como se o tivesse feito com o propósito de mudar a identidade. Magríssima, parecia outra pessoa. Óculos escuros a esconderem olhos e alma, andava apressadamente.
Buzinei mais uma vez e, como os carros continuavam parados apesar do semáforo ter passado a verde, saí do carro e abordei-a.
Os seus olhos encontraram os meus quando lhe agarrei o braço e sussurrei o seu nome. Ficámos paradas uns segundos. Disse-lhe para esperar um pouco enquanto arrumava o carro. Ficou sem reacção alguma, parada, como se fosse uma estátua revivendo o que tinha esquecido.

Corri para junto dela, dei-lhe o braço e levei-a até à esplanada mais próxima. Ficámos sentadas cara a cara.
"-Então, vai contar-me ou não?"- perguntei-lhe directamente.

Falámos durante horas. Um pouco de nada e mais um tanto de quase tudo. De nós, de sentimentos e de afectos.
Afinal, Filipa não se afastara por amar outra mulher. Filipa ainda se desgostava por não ter tido coragem de não abortar.
Por ter morto a esperança que é ter um filho, independentemente de quem é o pai. Por não ter entendido a tempo que quem é importante é o filho e não o pai. Que os filhos serão sempre nossos filhos com ou sem distâncias e mágoas, e os pais podem ficar ou não com a certeza que as mágoas passam.
E por viver sem esperança não conseguiu enfrentar mais os amigos e a família.
A sua companheira tinha sobrinhos e netos e Filipa tinha-os “adoptado” fazendo deles filhos do seu coração.

Não me deu a sua nova direcção, nem de Portugal nem em França. Fiquei com um sentimento forrado a vazio embora tivesse sido bom reencontrá-la e reencontrar o nosso passado tão cheio de cumplicidades.
Não esqueço o que me disse quando entrava para o carro: “ Repare que já tenho 45 anos...nunca saberei o que é ter um filho. Entende que a minha vida mudou desde então? Consegue entender-me?”.
Acenei-lhe afirmativamente.
“- Boa sorte, escreve-me sim? Felicidades... Os filhos do coração não são menos que os outros...é amor, empenho, afecto, as raízes e as referências são importantes... Escreve-mmmeee...”-gritei-lhe já com o carro em andamento.

Culpa? Mas que culpa? Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Afinal há vítimas, sim.
Dou comigo à procura da Filipa, inconscientemente, olhando cada vez que páro o carro num dos semáforos perto da Avª de Roma onde a encontrei da última vez.
Tanto que me esqueci de lhe dizer naquela tarde!
O quanto lamento, o quanto entendo, o quanto não julgo, o quanto gostaria que me tivesse contactado quando precisava de ajuda.
Contar-lhe-ia o que sente uma mulher que engravida e que por um forte motivo aborta, que só ela e mais ninguém poderá carregar esse filho ou essa perda.
Terei oportunidade de lhe dizer?
Quando nos encontraremos outra vez?