ESFERAS ETERNAMENTE FEMININAS
Culpa? Mas que culpa?
Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Começa-se sempre pelo início e algo acontece. E vai acontecendo, desenrolando-se ou enrolando-se.
Há as pazes e as brigas. Os amores e os desamores. A confiança e o desmoronar das construções ora fortes como castelos ora frageís como penas.
Fisioterapeuta de profissão e de coração Filipa era uma rapariga alta, constituição óssea larga, mas muito torneada. Morena de pele e cor de cabelo, tinha os olhos pretos como azeitonas.
Desde cedo que a actividade física fizera parte do seu quotidiano. Passou pelo ballet quando menina, continuou na ginástica aplicada e foi no judo que conheceu o Paulo por quem se apaixonou.
Sem nunca ter coragem de reconhecer perante ele que sonhava com uma relação séria, com princípio, meio e fim, deixou-se levar por ele e pelo tempo só para não o perder.
Passados dois anos esse relacionamento não a fazia feliz, mas preenchia-lhe alguns momentos de felicidade roubados à vida que Paulo, esse sim, tinha para com ele e os outros.
Filipa engravidou e Paulo não aceitou que a gravidez fosse levada até ao fim. Insistiu para que Filipa fizesse um aborto, disse-lhe que iria estar sempre a seu lado e todas aquelas coisas que ela não queria ouvir. Só queria ter ouvido uma palavra, uma frase que afirmativamente lhe dissesse o quanto o faria feliz ter um filho dela.
Foram tempos difíceis aqueles. Lembro-me bem as vezes sem conta que o meu telefone tocou de madrugada. Do outro lado da linha Filipa lavada em lágrimas era o espelho da indecisão, do medo e da dúvida.
Sei que abortou e que a relação com o Paulo acabou, inevitavelmente. O seu desamor tinha sido mostrado em letras maiúsculas. Nem mesmo Filipa, e a sua obsessão por Paulo, podia continuar a fingir-se cega perante tal atitude.
O tempo foi passando e, apesar de morarmos bem perto, perdi-lhe o rasto.
Os postais de Natal vieram invariavelmente devolvidos durante dois anos. Tentei através de um número de telefone da mãe dela saber do seu paradeiro, mas a única pista foi-me dada, por acaso, um dia num supermercado de Lisboa.
Quase não o reconhecendo fiquei atrás de António na fila da charcutaria. António tinha sido colega da Filipa no instituto de fisioterapia. Tinham trabalhado juntos e sabia-os de algum modo íntimos durante algum tempo, enquanto o caso não chegou aos ouvidos da mulher dele.
António virou-se e sorriu.
“- Há quanto tempo! O que é feito de ti ?”- exclamou beijando-me.
“- Tudo bem. E contigo?” - perguntei.
Após breve troca de cortesias perguntei-lhe se sabia do paradeiro da Filipa.
Comecei, então, a ouvir contar uma história que, confesso, de início me pareceu pura invenção. Despedi-me e durante dias não me saiu da cabeça aquela confusão que ouvira em torno da vida da minha amiga.
De seguida, e já na posse de alguns elementos fundamentais, tornei a contactar a mãe dela e encontrámo-nos para tomar um café.
“- A Filipa ficou muito mal após o aborto, tu sabes!"- confessou-me baixinho, olhando tristemente para a chávena já vazia.
“- Sim, eu sei que aquele filho era desejado por ela. Ela amava muito o Paulo...desde miúda...mas ele nunca soube amá-la ou sequer entender o que estava a receber da parte dela!”- retorqui.
“- Pois. Teve uma depressão enorme e começou a emagrecer imenso, primeiro pela doença e depois por vontade própria...como se ela culpasse o seu corpo do desamor de Paulo. Sabes, são processos inconscientes, mas que estão dentro das pessoas e que são muito complicados de ultrapassar.”
“- Sim eu sei, mas por que razão ela se afastou ?”- perguntei tentando entender.
“- De ti e de todos. Até de mim!”- disse entristecida.
“- Conheceu uma médica... a quem fez ginástica respiratória como fisioterapeuta que era e... olha, acabou por ficar a viver lá em casa dela! Deixou a casa e mudou-se definitivamente.”- disse aos repelões, como se quisesse afastar um mal que lhe acontecera.
“- Sim, que se mudou eu sei porque os postais que lhe mandei vieram sempre devolvidos!”- respondi ficando à espera de saber o que se passara com a minha amiga.
“- Foram as duas para França durante dois anos e agora vivem cá e lá. Estão bem as duas...sabes...percebes o que te digo, não?”- disse brincando com a colher dentro da chávena vazia, sem conseguir olhar para mim.
“- Sim, percebo, não tem mal algum...Gostam uma da outra, é isso? E por esse motivo afastaram-se de todos? Por medo que não aceitássemos a sua homosexualidade?...Que tontaria. Ninguém tem nada com isso. Elas têm de procurar a sua própria felicidade.”- acrescentei.
Passado cerca de um ano estava dentro do carro, parada no meio do trânsito desta cidade caótica que é Lisboa e vejo alguém que parecia a Filipa. O seu nariz adunco era inconfundível, mesmo que o corpo estivesse completamente diferente. Magro, sem vida e sem a sua habitual vivacidade.
Buzinei, apitei várias vezes, mas nada.
Estava loira. Loiríssima, como se o tivesse feito com o propósito de mudar a identidade. Magríssima, parecia outra pessoa. Óculos escuros a esconderem olhos e alma, andava apressadamente.
Buzinei mais uma vez e, como os carros continuavam parados apesar do semáforo ter passado a verde, saí do carro e abordei-a.
Os seus olhos encontraram os meus quando lhe agarrei o braço e sussurrei o seu nome. Ficámos paradas uns segundos. Disse-lhe para esperar um pouco enquanto arrumava o carro. Ficou sem reacção alguma, parada, como se fosse uma estátua revivendo o que tinha esquecido.
Corri para junto dela, dei-lhe o braço e levei-a até à esplanada mais próxima. Ficámos sentadas cara a cara.
"-Então, vai contar-me ou não?"- perguntei-lhe directamente.
Falámos durante horas. Um pouco de nada e mais um tanto de quase tudo. De nós, de sentimentos e de afectos.
Afinal, Filipa não se afastara por amar outra mulher. Filipa ainda se desgostava por não ter tido coragem de não abortar.
Por ter morto a esperança que é ter um filho, independentemente de quem é o pai. Por não ter entendido a tempo que quem é importante é o filho e não o pai. Que os filhos serão sempre nossos filhos com ou sem distâncias e mágoas, e os pais podem ficar ou não com a certeza que as mágoas passam.
E por viver sem esperança não conseguiu enfrentar mais os amigos e a família.
A sua companheira tinha sobrinhos e netos e Filipa tinha-os “adoptado” fazendo deles filhos do seu coração.
Não me deu a sua nova direcção, nem de Portugal nem em França. Fiquei com um sentimento forrado a vazio embora tivesse sido bom reencontrá-la e reencontrar o nosso passado tão cheio de cumplicidades.
Não esqueço o que me disse quando entrava para o carro: “ Repare que já tenho 45 anos...nunca saberei o que é ter um filho. Entende que a minha vida mudou desde então? Consegue entender-me?”.
Acenei-lhe afirmativamente.
“- Boa sorte, escreve-me sim? Felicidades... Os filhos do coração não são menos que os outros...é amor, empenho, afecto, as raízes e as referências são importantes... Escreve-mmmeee...”-gritei-lhe já com o carro em andamento.
Culpa? Mas que culpa? Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Afinal há vítimas, sim.
Dou comigo à procura da Filipa, inconscientemente, olhando cada vez que páro o carro num dos semáforos perto da Avª de Roma onde a encontrei da última vez.
Tanto que me esqueci de lhe dizer naquela tarde!
O quanto lamento, o quanto entendo, o quanto não julgo, o quanto gostaria que me tivesse contactado quando precisava de ajuda.
Contar-lhe-ia o que sente uma mulher que engravida e que por um forte motivo aborta, que só ela e mais ninguém poderá carregar esse filho ou essa perda.
Terei oportunidade de lhe dizer?
Quando nos encontraremos outra vez?
Culpa? Mas que culpa?
Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Começa-se sempre pelo início e algo acontece. E vai acontecendo, desenrolando-se ou enrolando-se.
Há as pazes e as brigas. Os amores e os desamores. A confiança e o desmoronar das construções ora fortes como castelos ora frageís como penas.
Fisioterapeuta de profissão e de coração Filipa era uma rapariga alta, constituição óssea larga, mas muito torneada. Morena de pele e cor de cabelo, tinha os olhos pretos como azeitonas.
Desde cedo que a actividade física fizera parte do seu quotidiano. Passou pelo ballet quando menina, continuou na ginástica aplicada e foi no judo que conheceu o Paulo por quem se apaixonou.
Sem nunca ter coragem de reconhecer perante ele que sonhava com uma relação séria, com princípio, meio e fim, deixou-se levar por ele e pelo tempo só para não o perder.
Passados dois anos esse relacionamento não a fazia feliz, mas preenchia-lhe alguns momentos de felicidade roubados à vida que Paulo, esse sim, tinha para com ele e os outros.
Filipa engravidou e Paulo não aceitou que a gravidez fosse levada até ao fim. Insistiu para que Filipa fizesse um aborto, disse-lhe que iria estar sempre a seu lado e todas aquelas coisas que ela não queria ouvir. Só queria ter ouvido uma palavra, uma frase que afirmativamente lhe dissesse o quanto o faria feliz ter um filho dela.
Foram tempos difíceis aqueles. Lembro-me bem as vezes sem conta que o meu telefone tocou de madrugada. Do outro lado da linha Filipa lavada em lágrimas era o espelho da indecisão, do medo e da dúvida.
Sei que abortou e que a relação com o Paulo acabou, inevitavelmente. O seu desamor tinha sido mostrado em letras maiúsculas. Nem mesmo Filipa, e a sua obsessão por Paulo, podia continuar a fingir-se cega perante tal atitude.
O tempo foi passando e, apesar de morarmos bem perto, perdi-lhe o rasto.
Os postais de Natal vieram invariavelmente devolvidos durante dois anos. Tentei através de um número de telefone da mãe dela saber do seu paradeiro, mas a única pista foi-me dada, por acaso, um dia num supermercado de Lisboa.
Quase não o reconhecendo fiquei atrás de António na fila da charcutaria. António tinha sido colega da Filipa no instituto de fisioterapia. Tinham trabalhado juntos e sabia-os de algum modo íntimos durante algum tempo, enquanto o caso não chegou aos ouvidos da mulher dele.
António virou-se e sorriu.
“- Há quanto tempo! O que é feito de ti ?”- exclamou beijando-me.
“- Tudo bem. E contigo?” - perguntei.
Após breve troca de cortesias perguntei-lhe se sabia do paradeiro da Filipa.
Comecei, então, a ouvir contar uma história que, confesso, de início me pareceu pura invenção. Despedi-me e durante dias não me saiu da cabeça aquela confusão que ouvira em torno da vida da minha amiga.
De seguida, e já na posse de alguns elementos fundamentais, tornei a contactar a mãe dela e encontrámo-nos para tomar um café.
“- A Filipa ficou muito mal após o aborto, tu sabes!"- confessou-me baixinho, olhando tristemente para a chávena já vazia.
“- Sim, eu sei que aquele filho era desejado por ela. Ela amava muito o Paulo...desde miúda...mas ele nunca soube amá-la ou sequer entender o que estava a receber da parte dela!”- retorqui.
“- Pois. Teve uma depressão enorme e começou a emagrecer imenso, primeiro pela doença e depois por vontade própria...como se ela culpasse o seu corpo do desamor de Paulo. Sabes, são processos inconscientes, mas que estão dentro das pessoas e que são muito complicados de ultrapassar.”
“- Sim eu sei, mas por que razão ela se afastou ?”- perguntei tentando entender.
“- De ti e de todos. Até de mim!”- disse entristecida.
“- Conheceu uma médica... a quem fez ginástica respiratória como fisioterapeuta que era e... olha, acabou por ficar a viver lá em casa dela! Deixou a casa e mudou-se definitivamente.”- disse aos repelões, como se quisesse afastar um mal que lhe acontecera.
“- Sim, que se mudou eu sei porque os postais que lhe mandei vieram sempre devolvidos!”- respondi ficando à espera de saber o que se passara com a minha amiga.
“- Foram as duas para França durante dois anos e agora vivem cá e lá. Estão bem as duas...sabes...percebes o que te digo, não?”- disse brincando com a colher dentro da chávena vazia, sem conseguir olhar para mim.
“- Sim, percebo, não tem mal algum...Gostam uma da outra, é isso? E por esse motivo afastaram-se de todos? Por medo que não aceitássemos a sua homosexualidade?...Que tontaria. Ninguém tem nada com isso. Elas têm de procurar a sua própria felicidade.”- acrescentei.
Passado cerca de um ano estava dentro do carro, parada no meio do trânsito desta cidade caótica que é Lisboa e vejo alguém que parecia a Filipa. O seu nariz adunco era inconfundível, mesmo que o corpo estivesse completamente diferente. Magro, sem vida e sem a sua habitual vivacidade.
Buzinei, apitei várias vezes, mas nada.
Estava loira. Loiríssima, como se o tivesse feito com o propósito de mudar a identidade. Magríssima, parecia outra pessoa. Óculos escuros a esconderem olhos e alma, andava apressadamente.
Buzinei mais uma vez e, como os carros continuavam parados apesar do semáforo ter passado a verde, saí do carro e abordei-a.
Os seus olhos encontraram os meus quando lhe agarrei o braço e sussurrei o seu nome. Ficámos paradas uns segundos. Disse-lhe para esperar um pouco enquanto arrumava o carro. Ficou sem reacção alguma, parada, como se fosse uma estátua revivendo o que tinha esquecido.
Corri para junto dela, dei-lhe o braço e levei-a até à esplanada mais próxima. Ficámos sentadas cara a cara.
"-Então, vai contar-me ou não?"- perguntei-lhe directamente.
Falámos durante horas. Um pouco de nada e mais um tanto de quase tudo. De nós, de sentimentos e de afectos.
Afinal, Filipa não se afastara por amar outra mulher. Filipa ainda se desgostava por não ter tido coragem de não abortar.
Por ter morto a esperança que é ter um filho, independentemente de quem é o pai. Por não ter entendido a tempo que quem é importante é o filho e não o pai. Que os filhos serão sempre nossos filhos com ou sem distâncias e mágoas, e os pais podem ficar ou não com a certeza que as mágoas passam.
E por viver sem esperança não conseguiu enfrentar mais os amigos e a família.
A sua companheira tinha sobrinhos e netos e Filipa tinha-os “adoptado” fazendo deles filhos do seu coração.
Não me deu a sua nova direcção, nem de Portugal nem em França. Fiquei com um sentimento forrado a vazio embora tivesse sido bom reencontrá-la e reencontrar o nosso passado tão cheio de cumplicidades.
Não esqueço o que me disse quando entrava para o carro: “ Repare que já tenho 45 anos...nunca saberei o que é ter um filho. Entende que a minha vida mudou desde então? Consegue entender-me?”.
Acenei-lhe afirmativamente.
“- Boa sorte, escreve-me sim? Felicidades... Os filhos do coração não são menos que os outros...é amor, empenho, afecto, as raízes e as referências são importantes... Escreve-mmmeee...”-gritei-lhe já com o carro em andamento.
Culpa? Mas que culpa? Nestas coisas do coração não há culpa, culpados ou vítimas.
Afinal há vítimas, sim.
Dou comigo à procura da Filipa, inconscientemente, olhando cada vez que páro o carro num dos semáforos perto da Avª de Roma onde a encontrei da última vez.
Tanto que me esqueci de lhe dizer naquela tarde!
O quanto lamento, o quanto entendo, o quanto não julgo, o quanto gostaria que me tivesse contactado quando precisava de ajuda.
Contar-lhe-ia o que sente uma mulher que engravida e que por um forte motivo aborta, que só ela e mais ninguém poderá carregar esse filho ou essa perda.
Terei oportunidade de lhe dizer?
Quando nos encontraremos outra vez?
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