Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, novembro 10, 2006



ANDY




Os nossos carros estavam parados lado a lado num estacionamento em espinha, ali ao pé do Técnico – como costumávamos chamar ao Instituto Superior de Engenharia. Víamos a Fonte Luminosa do outro lado da Avª Almirante Reis. Foi no tempo em que ambos morávamos em Lisboa. Combinámos um encontro fora de casa para ser mais fácil, mais impessoal disseste-me pelo telefone quando perguntei a razão.
Tens de mostrar um ar normalizado, como os envelopes dos Correios, ia repetindo para mim própria no momento crucial em que me falaste de separação.

Que os pais isto, e que os amigos aquilo e que o teu início de carreira socialmente precisava de... e que e mais não sei o quê... só não me contaste a banal e trivial história de haver uma loirinha da tua idade, sem passado nem presente que pesasse no balancete de família. Devias ter-me dito, pois já desconfiava desde que a vi na piscina com o seu ar empertigado e snob.
Tinha percebido há algumas semanas atrás, tirando logo a prova dos nove com a resposta que deste, tranquilamente deitado na espreguiçadeira quando te disse que ela andava muito interessada em ti: “Não tem hipóteses nenhumas! Vê-se logo que é uma menina mimada à procura de marido rico para casar de papel passado. E nem é nada de jeito !”.
Pois mas era mesmo o molde certo para o sapato social do teu pé.

Lembro-me do estacionamento em espinha e da nossa grande diferença de idade. Para a época era um escândalo, sei-o bem.
Eras solteiríssimo, filho varão de uma família abastada francogermânica.
Eu uma mulher feita, com um bonito corpo de quem, ainda jovem já foi mãe. Divorciada e com uma filha pequena.
Estavas a tirar o estágio lá na empresa.
Tinhas 24 anos, eras loiro e os teus cabelos muito lisos e mais compridos que o normal para a época. Tinhas uma franja que achava sexy.

Um dia esfreguei a minha mão nos teus cabelos quando passava no corredor no meio das secretárias. Tinha 29 anos e sentia-me atraída por ti desde que começaste a estagiar no departamento. Reparei nos teus ombros, largos e robustos, nas tuas mãos masculinas e numa cicatriz na cara que demonstrava o teu desassossego.

Olhaste-me de soslaio e sorriste. Disseste que não tinha importância quando te pedi desculpa pelo atrevimento.
O resto da tarde foi completamente improdutivo para ambos.
Passámos pelas etapas todas a correr , até chegarmos ao sexo. Esse elo era, sem dúvida, o mais forte. A paixão e o envolvimento revolvia as nossas vidas ao ponto de querermos ultrapassar todas as barreiras e desafiar o mundo inteiro para permanecermos juntos.
Tinhas orgulho em mim. Quando entrávamos em discotecas, restaurantes ou bares não havia macho mais orgulhoso e mais possessivo que tu.
Eu, pelo meu lado, sentia-me muito amada e fingia não saber que o tempo e a tua família não nos iam ajudar.

Ríamos como uns doidos, perdidos do mundo que nos rodeava. Tudo era motivo de entusiasmo e brincadeira: lembro-me que alugaste por uns dias uma casa rústica que tinha lareira e que assámos as castanhas nas brasas que aqueciam os nossos corpos nus durante toda a noite. Foi num verão de São Martinho, em Novembro.
Um dia, ofereceste-me um anel comprado com o teu primeiro ordenado e embrulhaste-o de tal forma que tive de puxar por um cordel com vários metros de comprimento até conseguir tirá-lo da caixa.

O tempo ia passando e inventávamos novos modelos de vida a dois- neste caso a três contando com a minha pequenita. Não conseguia decidir-me entre o papel de jovem mãe e amante profissional. Na altura ainda não sabia que podia ser as duas coisas.
Cinto de ligas, lingerie francesa com folhos e penas de cores exuberantes. Meias pretas até meio da coxa, sapatos com salto de 8 cm e lençois de cetim na cama. Na minha cama porque nem sequer casa tinhas. Um dia fizémos amor no teu quarto em casa dos teus pais! E tirámos fotografias como troféu de o ter feito em casa das feras!

Chamava-te Andy e desenhava-te mentalmente quando não te tinha. Curiosamente foi nos teus braços que aprendi o sabor do erotismo e o prazer de ver o corpo de um homem. Descobrimos juntos muito nesses mundos interiores, das fantasias e dos fetiches, mais do que algum dia tínhamos sonhado ou ousado anteriormente.

Os carros estavam parados lado a lado em espinha. Cerrei os punhos com força e tentei esboçar um sorriso. Até hoje não sei se consegui ou não. Foste irredutível. Querias casar pela igreja, querias uma família, também havia a herança dos pais e ... o casamento tinha de ser com alguém que também começasse do zero, sem filhos, imaculada. Querias ter filhos e uma família sem mácula. Divórcios eram sempre mal vistos na família e na sociedade.
Engraçado, pela primeira vez falaste que estavas inserido numa sociedade e que não podias fugir das suas regras. Serias deserdado e não aceite como sócio do alemão amigo do teu pai. Fiquei silenciosa só falando interiormente que naquele momento não podia ser, não podia chorar nem fraquejar. Talvez quando entrasse no carro...ou já em casa, mas ali não. Tinha de fazer um esforço, tentar sorrir mesmo que tristemente, mas tinha de ser como nos filmes. Sem choros explosivos e demonstrações de fraqueza. Balbuciei algo mas não me lembro. Nada de importante ou relevante o que quer que tenha sido.
Talvez algo sobre a minha filha e como era importante ou que não entendia o porquê de tal afastamento...e mais uma série de tentativas vãs para amortecer tal queda. Uma queda de um salto que tinha durado quase quatro anos.

Sentei-me no carro e agarraste a porta antes que a conseguisse fechar.
“Encontrarás alguém à tua altura, meu amor. És uma mulher lindíssima, podem dar-te o mundo inteiro e tu mereces mais do que um rapaz em início de vida te pode dar”.
Afinal eu só queria tê-lo sem pensarmos no dia seguinte. O que importava o futuro com um amor daqueles? Nada!
Sabia que estavas a dizer muitas coisas ao lado da cruel realidade só para que não chorasse tornando a despedida mais dolorosa.
Cerrei os punhos e tentei lançar-te um último sorriso.
“Adeus, Andy. Vêmo-nos por aí.”

Fiz marcha atrás e não me recordo de ter chegado a casa. Chorei a noite toda sentindo-me completamente infeliz e injustiçada.
Pensei que nunca mais iria apaixonar-me assim.

Durante muito tempo não frequentei os sítios do costume. E deixei de saber de ti. As minhas amigas sabiam que não deviam perguntar nada arriscando-se a verem-me chorar copiosamente.
Lembro-me de te ter visto uns anos mais tarde num restaurante ao pé da Boca do Inferno em Cascais. Continuavas bonito, com dois filhos pequenos loiros e com uma carrinha Mercedes à porta. Pensei o quanto me tinha custado não chorar na despedida e que tinhas conseguido o que querias da vida.
Levantaste-te e enquanto vinhas na minha direcção despiste-me com os olhos. O teu beijo foi caloroso. Trocámos palavras banais e convidaste-me a sentar na tua mesa. Perante a minha negativa pediste-me o número de telemóvel e disseste como seria bom encontrarmo-nos. Dei-te o número errado. Já não me chegaria encontros furtivos às escondidas; já não bastava o teu másculo corpo na minha cama. A confiança tinha ficado partida naquele estacionamento em espinha. E agora já seria essencial para poder amar-te.