Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, janeiro 21, 2009

FOTOGRAFIA

Enviei-te uma carta. Ia num envelope já antigo, amarelecido pelo tempo e pelo pó. Escrevi o teu nome e endereço à mão com a minha melhor letra. Lá dentro coloquei uma fotografia que encontrei numa caixa de folha, ainda mais antiga que o envelope, e nada mais. Por trás tinha escrito uns números e umas palavras. Bastava para te recordar de nós.
A data atestava que tínhamos sido muito novos e que nos tínhamos amado desde cedo; as recordações que fizéramos tudo o que nos tinha dado prazer e que nos tinha sido possível.

"-Pouco, fizémos foi pouco...!" - costumavas dizer-me a rir.

Aquela fotografia tinha sido tirada há tantos anos! As máquinas ainda não eram digitais e lembro-me a risota que foi quando mandámos revelar as fotografias...achávamos que o senhor da loja iria olhar para nós de soslaio. Lembro-me que decidimos que iria eu para te poupar "à vergonha"!

Que ridículos e ingénuos que éramos. O empregado da loja de fotografia nem sequer olhou para mim de maneira especial. As fotografias vinham numa espécie de envelope semi aberto, com publicidade à Kodak, e ele nem sequer o abriu à minha frente. E eu também não o fiz para ver se as fotografias eram as nossas! Tive vergonha pois sabia que ali dentro estavas tu nua !

E tu, sentada no café mais próximo, lá estavas a sorrir com ar maroto à minha espera com pressa para as veres.
"-Mostra, mostra!"- pedias atrapalhada e apressada.

As fotografias ficaram tão bem, tão engraçadas e tão expressivas! Lembro-me que até enviámos uma delas para um concurso de uma revista.

Tinhas a pele tão macia que a película também assim ficou. A tua pele branca, lisa e arredondada, captava a atenção do fotógrafo e da câmara de tal maneira que todos os pormenores ficaram gravados: a cor dos teus cabelos escuros escorregando pelas tuas costas nuas, esbranquiçadas e tentadoras, os tons adamascados da tua lingerie amarrotada e suave, as tuas pernas convidativas, os teus pés egípcios longilíneos e descalços roçando um no outro. As tuas mãos ávidas do corpo procurando prazer no que tocavas. As maçãs que te acompanhavam em cima da mesa do atelier aromatizavam a atmosfera. Até os aromas quentes daquele dia ficaram nas fotografias, lembras-te? O nosso cheiro misturava-se com o das tintas ainda por esfregar e esmagar de encontro às telas, assim como me esmagava e esfregava de encontro a ti.

Eras bonita. Muito bonita e fresca como aquelas maçãs avermelhadas que nos dava a nossa senhoria. Lembras-te da D. Augusta? E do que ela nos dizia quando lhe pagávamos a renda com uns dias de atraso?

"- Não se come do amor, meus filhos. É só entusiasmo e paixão, mas dinheiro nem vê-lo, não é? Procurem outra vida, digo-vos eu. São novos, ainda... tenham tino e façam-se à vida. A menina é tão jeitosa, podia arranjar facilmente um daqueles com dinheiro. E você, meu garanhão, guarde a força para o trabalho!"- era sempre um sermão que dela ouvíamos.

Será que ainda te lembras desta fotografia? E do prazer? E do gozo em estarmos juntos? E das conversas infernais até de madrugada? E dos beijos? Ah, dos beijos é do que melhor me lembro.