Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, março 12, 2009

CONJUGANDO O VERBO



As nossas melhores viagens são, provavelmente, aquelas em que partimos regressando algures no passado. As que ficaram paradas no tempo das memórias e que teimamos em repetir, nem que seja para reter, mais uma vez, as sensações que nos trouxeram.

Falando de viagens, combóios, partidas e chegadas, disse Pedro a Isabel, com um sorriso nostálgico nos lábios:

" - Essa tua conversa fez-me recordar os tempos em que estava na tropa e tinha que me deslocar aos fins de semana de comboio para o Porto. O comboio-correio partia à meia-noite e a viagem durava toda a noite porque o comboio parava em todas as estações e só chegava ao destino às 7 horas da manhã. Era muito maçadora para quem viajava sentado mas, quando certo dia o meu pai me comprou um bilhete na carruagem especial da Wagon-Lit com cama, eu nunca mais quis outra coisa. Recordo-me de que adormecia mal me deitava ainda em Santa Apolónia e depois o camareiro acordava-me com o pequeno almoço quando chegávamos a Vila Nova de Gaia. Eram sempre umas noites em beleza que me deixaram saudades. Em especial aquelas em que eu acordava a meio e punha-me à janela a escutar os grilos, os ralos, as rãs e até, uma vez, um rouxinol, quando o comboio parava naqueles apeadeiros perdidos no meio do nada. Recordo-me de que nunca viajei acompanhado porque acho que os compartimentos eram individuais. "

Isabel não o interrompeu pois uma cor de felicidade coloria-lhe a cara, as mãos, e o sorriso.
Terminou o seu relato com uma pontinha de nostalgia. Pela saudade daquelas memórias ou pelo facto de ter viajado sempre sozinho?

Para certas pessoas não é sinónimo de terapia anti-stress fazer compras ou outra coisa parecida. Qual comprar roupa, qual restaurantes especiais, qual "spas" ou férias na neve, qual nada! As viagens é que são o verdadeiramente importante.

"- Minha querida, o melhor desta vida é conjugar o verbo ir em todos os tempos!"- dizia a tia Rosinda a Isabel.
Nunca ninguém conseguiu saber ao certo se aquelas saudades de viagens se prendiam, de facto, com uma tendência para "ir" fosse lá para que sítio fosse, ou se havia uma forte ligação com a vida que tinha feito com o marido durante anos e anos. Tinham viajado por todos os cantos do mundo, dentro e fora de Portugal...era mesmo conjugar o verbo ir em todos os tempos!
Isabel tinha uma opinião própria sobre isso: enquanto viajava com o marido a Tia Rosinda sabia-o indiscutivelmente a seu lado, longe de outras companhias femininas. Deixava para trás as suspeitas, as zangas e os ciúmes.Talvez tivesse razão. Nunca saberemos.

Quando não temos de viajar de um dia para o outro por um motivo inesperado, o compasso de espera, a contagem decrescente, o envolvimento na preparação e ensaio da viagem são os aspectos mais interessantes. O nosso imaginário entrelaça o que supomos que poderá ser com o que foi, algures um dia no passado, num projecto futuro mesclado de surpresas e "dejá vu".
As viagens feitas são, muitas vezes, a prática do que inventámos e ensaiámos milhares de vezes. Imagens vividas de um filme que projectámos no écran do querer. Sonho de sensações pelas quais nos apaixonámos.
Qual a próxima viagem?
Aquela em que estamos agora, neste combóio cujo percurso desconhecemos, cheio de embarques e desembarques, tristezas em certas partidas e pessoas especiais para fazerem a viagem connosco? Onde também circulam pessoas que quando desocupam o lugar ninguém percebe?
Viagem fantástica feita de fantasias, esperas, sonhos e atropelos. Estúpidos atropelos! Para quê? Não sabemos nunca em que paragem teremos de descer nem onde descerão os que viajam ao nosso lado e a quem amamos. Nessa altura da viagem a tristeza sentar-se-á ao nosso lado seguindo viagem até à estação onde deixaremos o combóio.

Conjugando os tempos do verbo.