Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, outubro 28, 2011


DIÁRIO MENTAL




5
Gota a gota os líquidos incolores caiem marcando o tempo, a espera. As cores esbatem-se na memória.
Luzes fluorescentes ferem os olhos que tento, sem grande sucesso, manter abertos.
Cores azuladas, esbranquiçadas rodopiam à minha volta acompanhando a valsa da dor e do sofrimento.
Gota a gota invadem-me as veias com catéteres e curas urgentes, rasgando-as, tentando apanhá-las enquanto fogem como podem, rebentando a cada toque.
Tubos de silicone transportam o tempo e a vida. 


6
Presa a tantos tubos não ousava mexer-me para ver a esperança entrar nas veias com manchas de sangue escuro derramado.
Agulhas e borboletas levavam para cá e para lá o sangue. O vermelho estava lá sempre. 
O cheiro era mesclado entre as tentativas assépticas, os químicos e o suor de lutar contra a infecção, sobreviver.



s
A memória do cheiro da pele da Ana foi a agradável dádiva de vida no meio dos dias lutando contra o contrário entre cheiros nauseabundos e nauseantes. Era a lembrança da possibilidade de vida cá fora.
A mão dela na minha cara, as festas no cabelo e o seu sussurro: “ Mãe...sorri para mim, consegues? Tenta sorrir, seria o teu melhor sinal. Força.”

Lembro-me da incapacidade sequer de abrir os olhos e que a minha voz saía como se não fosse a minha. Tentei mas certamente não consegui.

Mãe?... sorri para mim e para o teu segundo neto que vai nascer...consegues? Ainda é segredo mas a ti digo para que tentes lutar contra isto tudo”.
Sorri e sei que abri os olhos e vi um sorriso lindíssimo inundando aquele canto do hospital.


d
O soro, a medicação agressiva caem gota a gota a marcar o tempo que falta para acabar o sofrimento, a nausea, as dores, o mal estar. As dores, as dores, as dores.
Tempo que está a ser vivido no mundo inteiro, estes mesmos minutos, mas de formas diferentes.
As dores pioram de vez em quando lembrando-me onde e como estou, mas a espera diz-me que poderei melhorar e viver minutos diferentes, esperas diversas, outras sensações.

As veias cativas das agulhas massacram-me a carne e os olhos, desenham os contornos do corpo, simples e fraco corpo mero guardião da alma. Por isso vai ter de resistir mais uma vez?



2
Os combóios passam perto da janela do lado direito da cama onde jazo e a cada compasso de passagem recordam-me que ainda cá estou e que o mundo lá fora também.
Durante a noite era o único sinal a que me agarrava, além da troca dos tubos de silicone e do sangue, do sangue, do sangue.
O barulho dos combóios deixou de ser incómodo passando a essencial.
À noite os combóios são muito mais espaçados e alguns devem ser muito compridos pois demoram a dizer-me adeus.



3
Mais um dia em que o tempo corre devagar, devagarinho ao ritmo dos frasquinhos pendurados lá em cima, quase em cima da minha cabeça.
Parece que estou no Alentejo profundo. Pelo menos isso! A calma, a tranquilidade, o campo, a Natureza e o que nos aproxima de nós.