DIÁRIO MENTAL
5
Gota a
gota os líquidos incolores caiem marcando o tempo, a espera. As
cores esbatem-se na memória.
Luzes fluorescentes ferem os olhos que
tento, sem grande sucesso, manter abertos.
Cores
azuladas, esbranquiçadas rodopiam à minha volta acompanhando a
valsa da dor e do sofrimento.
Gota a
gota invadem-me as veias com catéteres e curas urgentes, rasgando-as, tentando apanhá-las enquanto fogem como podem, rebentando a cada
toque.
Tubos de silicone transportam o tempo e a vida.
6
Presa a
tantos tubos não ousava mexer-me para ver a esperança entrar nas
veias com manchas de sangue escuro derramado.
Agulhas
e borboletas levavam para cá e para lá o sangue. O vermelho estava
lá sempre.
O cheiro
era mesclado entre as tentativas assépticas, os químicos e o suor
de lutar contra a infecção, sobreviver.
s
A
memória do cheiro da pele da Ana foi a agradável dádiva de vida no
meio dos dias lutando contra o contrário entre cheiros nauseabundos
e nauseantes. Era a lembrança da possibilidade de vida cá fora.
A mão
dela na minha cara, as festas no cabelo e o seu sussurro: “
Mãe...sorri para mim, consegues? Tenta sorrir, seria o teu melhor sinal.
Força.”
Lembro-me
da incapacidade sequer de abrir os olhos e que a minha voz saía como
se não fosse a minha. Tentei mas certamente não consegui.
“Mãe?...
sorri para mim e para o teu segundo neto que vai nascer...consegues?
Ainda é segredo mas a ti digo para que tentes lutar contra isto
tudo”.
Sorri
e sei que abri os olhos e vi um sorriso lindíssimo inundando aquele
canto do hospital.
d
O
soro, a medicação agressiva caem gota a gota a marcar o tempo que
falta para acabar o sofrimento, a nausea, as dores, o mal estar. As
dores, as dores, as dores.
Tempo
que está a ser vivido no mundo inteiro, estes mesmos
minutos, mas de formas diferentes.
As
dores pioram de vez em quando lembrando-me onde e como estou, mas a
espera diz-me que poderei melhorar e viver minutos diferentes,
esperas diversas, outras sensações.
As
veias cativas das agulhas massacram-me a carne e os olhos, desenham
os contornos do corpo, simples e fraco corpo mero guardião da
alma. Por isso vai ter de resistir mais uma vez?
2
Os
combóios passam perto da janela do lado direito da cama onde jazo e
a cada compasso de passagem recordam-me que ainda cá estou e que o
mundo lá fora também.
Durante
a noite era o único sinal a que me agarrava, além da troca dos
tubos de silicone e do sangue, do sangue, do sangue.
O
barulho dos combóios deixou de ser incómodo passando a essencial.
À
noite os combóios são muito mais espaçados e alguns devem ser
muito compridos pois demoram a dizer-me adeus.
3
Mais
um dia em que o tempo corre devagar, devagarinho ao ritmo dos
frasquinhos pendurados lá em cima, quase em cima da minha cabeça.
Parece
que estou no Alentejo profundo. Pelo menos isso! A calma, a tranquilidade, o campo, a Natureza e o que nos aproxima de nós.
<< Home