Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, março 02, 2007



VOAR SEM ASAS











Os noivos trocavam as alianças. Olhei para a minha mão esquerda e ainda lá estava a que me tinhas dado no almoço no Pompidou. Quando pediste que casasse contigo e recusei porque já estava casada contigo há muito tempo. Entendo que me querias agradar. Afinal durante alguns anos sugeri-te que nos casássemos. Coisas de mulheres! Mas já nos tínhamos desposado tantas vezes com cerimónias mais bonitas que qualquer casamento que tivesse visto.

Em vão os meus olhos procuraram-te por toda a igreja...talvez atrás daquela coluna ou lá ao fundo, atrás de toda a gente como era teu costume.
Procurei um sinal de ti. Mas não te encontrei. Em vão, tentei recuperar a tua vida, a nossa vida. Já tinhas partido irremediavelmente há muito.
De nada valeria tentar que visses pelos meus olhos a Ana vestida de noiva e toda a minha vida espelhada nas pessoas que ali chegaram a testemunhar a sua felicidade.
Não conseguirias ver, mesmo através dos meus terrenos olhos.
Estarias ali ? Nunca o soube.

Provavelmente sim. Ou talvez não. Talvez no teu atelier, na nossa casa em Paris. Sim, se estivesses estarias certamente lá e verias a minha Ana vestida de noiva.
Lembrei-me do namoro dos teus pássaros, dos croissants com manteiga, do mar e tive uma terrível saudade de amanhecer em Paris.
Perseguindo-te abri as asas das mãos para poder fugir. Rasguei os lábios com um sorriso ganhando a luz de uma nova alvorada. Vesti a ternura arrumada, afugentando as sombras do passado. Descobri que a memória é uma ficção e o passado uma espécie de sonho, que só nos sonha tanto quanto o sonharmos.
E que nós dois só continuávamos a existir por termos sonhado o mesmo sonho ou o mesmo sonho ter-nos sonhado a ambos.
Abri as asas das mãos e fugi.