Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

terça-feira, maio 29, 2012


JUNHO


Sabes que dormi pouco, de ontem para hoje. Não me sais do sangue. E não me respondeste à mensagem que te mandei ontem. Depois...calcei as pantufas e...senti os teus pés. Senti-os a correr pela areia da Caparica, senti-os no tapete do carro quando, excitada, fazias amor, saída do Emmanuelle, senti-os nos corredores do IPO, lutando pela vida do teu pai. 
Estava ali o calcorrear de uma vida, a alegria, o prazer, o lutar, o sobreviver. Senti-os também pouco acompanhados, nessa caminhada. Muitos passos solitários, muitos passos cujo único som é o eco que deixam. Isso, eu não tenho dúvidas. 

O teu próprio discurso é estruturado. Tens um discurso de alguém que falou muito tempo consigo mesma. De alguém que nunca teve interlocutor real. Mas, enquanto tu me descobrias os segredos nos restos do café, segredos negros, tão escuros que tu própria não os decifras, deixaste-me os teus no calor das pantufas, singelo sinal que se poderia ter concretizado no cheiro do teu corpo, do teu sexo, nos meus lençóis mas que, ontem, teve todas as barreiras, todos os respeitos, todos os pruridos, todas as convenções. Digamos que nos portámos socialmente bem, que assim podemos andar de cabeça levantada, conquistado que foi o respeito dos abstractos outros, espelho do espelho da nossa consciência. 

E, sendo assim, tudo está bem. Mesmo quando a cama arrefece, mesmo quando o coração bate algures fora do peito, mesmo quando as mãos clandestinamente tocam o sexo, pontualmente vivendo um momento que não é o real. 
Ontem estivémos ambos fora do baralho. Completamente. Julgo que tens completa consciência disso. Fomos um caso em mil.
Que mulher e que homem, desejando-se, estariam uma noite inteira sózinhos respeitando os ausentes?
Senti-me a noite inteira como um agrilhoado com a fonte frente aos olhos. Bastava um gesto, um movimento mais e as correntes deixar-me-iam colocar a boca na tua boca, no teu sexo. Beber(-te), enfim.
Mas as correntes fizeram barulho toda a noite. Não nos movimentos mas nas palavras. 
Nos movimentos foste, aliás, totalmente feminina, no sentido literal do termo: foste infantil, provocadora e maléfica como só as verdadeiras mulheres o conseguem ser. As tuas pernas não pararam a noite inteira, frente aos meus olhos, por vezes descobertas até às coxas, mas sempre cobertas por uns collants que te recusaste a tirar. Como se a transparência daqueles collants fosse a última prova pela qual a consciência passaria no tempo que levaria a despi-los.

Mas as palavras foram muito mais opacas que os collants. Elas demarcaram o território do possível - curioso que quando abordámos o assunto tu levantaste-te, o vestido cobriu definitivamente as tuas pernas.
Depois voltaste a sentar-te, definidas como estavam as categorias, isolado o que poderia ser a transgressão. 
O que fizémos ontem, aliás, em toda a conversa sobre nós, não foi reconhecer os impedimentos mas, antes, reconhecer a possibilidade da transgressão. Ela já se tinha verificado no simples facto de te convidar para jantar, no simples facto de aceitares vir a minha casa, no simples facto de sabermos que íamos estar sós...no simples facto de eu te ter convidado.
Tratava-se, portanto, de reconhecer a existência daquilo que estava a ser vivido. Eventualmente de inventar um novo nome para a transgressão. De pacificar com palavras uma consciência que estava longe de estar tranquila.

No carro, de regresso a Lisboa, mordeste-me as mãos, lambi as tuas. As máscaras caíram. Nenhum pecado foi cometido. O pecado seria continuar o teatro.
Voltei para casa e não consegui dormir.
Vê se vens mais vezes, nem que seja para falarmos na possibilidade impossível da transgressão. Nem que seja para depois voltarmos para casa e sonharmos com as coisas que não fizémos.