GUARDIÃ
I.
Gota a gota líquidos incolores caiem marcando
o tempo, a espera.
As cores esbatem-se na memória enquanto as luzes
ferem os olhos que tento, sem sucesso, manter abertos.
Manchas azuladas rodopiam à minha volta
acompanhando a valsa de dor e sofrimento.
Os segundos invadem-me as veias com catéteres
e curas urgentes, rasgando-as, tentando apanhá-las enquanto fogem como podem,
rebentando a cada toque. Tubos de silicone transportam o tempo e a vida.
A atenção também é alienação. Neste caso o
que me aliena? A atenção ao momento de retorno?
II.
Presa a fios de vida não ouso mexer-me vendo
a esperança bordada a manchas escuras, desenhos gravados a sangue.
Agulhas e borboletas levam-no para cá e para
lá. O vermelho é o denominador comum.
Afastada que estou dos ruídos de fundo do
quotidiano nevoeiro patético não existe mais nenhuma interacção para além da
que permanece sempre comigo. Será isto a alma?
Nada mais canta o coração da cidade que tanto
pode ser esta ou outra. Só um bate ao compasso da máquina que me respira.
De novo a alienação
da atenção: o sobreviver tem um odor próprio e inconfundível no pensamento. Mescla
entre as tentativas assépticas, os químicos e o suor de lutar.
III.
A expansão do universo continua em marcha sem
que possa tocá-la, sem lhe dar tons e dons poéticos apesar desta beleza colateral
à dor.
Presente está o amor liberto do medo, da
expectativa ou parcialidade. Olhado nos olhos.
A memória do cheiro da Ana é a agradável conexão à
vida num compasso de esforço entre a
náusea e a respiração.
Lembrança da possibilidade de vida lá fora. Da sua
existência com outros parâmetros.
A incapacidade de abrir os olhos está presente e
forte. A voz não é minha como todo o meu corpo. Tento mas certamente não consigo que oiças o grito do meu silêncio.
Sei que um sorriso inunda, exactamente neste momento,
aquele canto sem pedir licença para entrar.
IV.
De novo o soro e a medicação agressiva gota a gota a
marcar o tempo que falta para acabar o tempo.
Tempo que está a ser vivido no mundo inteiro, estes
mesmos minutos, mas de formas diferentes.
As dores pioram de vez em quando lembrando-me onde e
como estou. A atenção de novo como forma de alienação. A espera diz-me que
poderei melhorar e viver minutos diferentes, esperas diversas, outras
sensações.
V.
As veias cativas massacram-me a carne e os olhos,
desenham os contornos do corpo, mero guardião da alma.
O sorriso como o momento do retorno. De uma
imensa solidão, clarão ao mundo esperando uma das formas com que se veste o
milagre.
O que marcará o tempo seguinte?
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