Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

domingo, setembro 24, 2017



GUARDIÃ






I.
Gota a gota líquidos incolores caiem marcando o tempo, a espera.
As cores esbatem-se na memória enquanto as luzes ferem os olhos que tento, sem sucesso, manter abertos.
Manchas azuladas rodopiam à minha volta acompanhando a valsa de dor e sofrimento.
Os segundos invadem-me as veias com catéteres e curas urgentes, rasgando-as, tentando apanhá-las enquanto fogem como podem, rebentando a cada toque. Tubos de silicone transportam o tempo e a vida.
A atenção também é alienação. Neste caso o que me aliena? A atenção ao momento de retorno?


II.
Presa a fios de vida não ouso mexer-me vendo a esperança bordada a manchas escuras, desenhos gravados a sangue.
Agulhas e borboletas levam-no para cá e para lá. O vermelho é o denominador comum.
Afastada que estou dos ruídos de fundo do quotidiano nevoeiro patético não existe mais nenhuma interacção para além da que permanece sempre comigo. Será isto a alma?
Nada mais canta o coração da cidade que tanto pode ser esta ou outra. Só um bate ao compasso da máquina que me respira.
De novo a alienação da atenção: o sobreviver tem um odor próprio e inconfundível no pensamento. Mescla entre as tentativas assépticas, os químicos e o suor de lutar.


III.
A expansão do universo continua em marcha sem que possa tocá-la, sem lhe dar tons e dons poéticos apesar desta beleza colateral à dor.
Presente está o amor liberto do medo, da expectativa ou parcialidade. Olhado nos olhos.

A memória do cheiro da Ana é a agradável conexão à vida num compasso  de esforço entre a náusea e a respiração.
Lembrança da possibilidade de vida lá fora. Da sua existência com outros parâmetros.
A incapacidade de abrir os olhos está presente e forte. A voz não é minha como todo o meu corpo. Tento mas certamente não consigo que oiças o grito do meu silêncio.
Sei que um sorriso inunda, exactamente neste momento, aquele canto sem pedir licença para entrar.


IV.
De novo o soro e a medicação agressiva gota a gota a marcar o tempo que falta para acabar o tempo.
Tempo que está a ser vivido no mundo inteiro, estes mesmos minutos, mas de formas diferentes.
As dores pioram de vez em quando lembrando-me onde e como estou. A atenção de novo como forma de alienação. A espera diz-me que poderei melhorar e viver minutos diferentes, esperas diversas, outras sensações.


V.
As veias cativas massacram-me a carne e os olhos, desenham os contornos do corpo, mero guardião da alma.
O sorriso como o momento do retorno. De uma imensa solidão, clarão ao mundo esperando uma das formas com que se veste o milagre.

O que marcará o tempo seguinte?