Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, março 08, 2007

PELO LADO DE DENTRO




Despedi-me dos mais chegados e apanhei um táxi de volta ao Areeiro.
O taxista era muito simpático. Pensei que estranhamente simpático até me aperceber que estava a estabelecer comparações como se estivesse em França. Que disparate!... Lá nunca um taxista conversaria tanto com um cliente e muito menos acerca do casamento do qual se apercebera que tinha saído. Excepto se fosse um taxista português radicado em França, claro. Nesse caso a “conversinha” correria durante toda a viagem ao aperceber-se que levava um cliente português. Saudades da terra, diriam algumas pessoas. Não, não é, é mesmo a formação que é diferente.



Uma das características da sociedade actual é a hipocrisia, especialmente nos subúrbios, onde as pessoas tentam parecer normais. Na cidade não tentamos fazer isso de forma tão acentuada. Assumimos simplesmente que a pessoa que está ao nosso lado é doida, por exemplo! O que já não acontece nas nossas aldeias ou pequenas localidades espalhadas pelo país.
Lembro-me daquele restaurantezinho ao pé da serra onde íamos sempre almoçar “fora de horas”. Lembras-te como nos olhavam com aqueles olhinhos pretos encobertos pelas suas pálpebras pouco rasgadas? As chinesas que serviam à mesa tinham sempre risinhos nervosos devido aos comentários já feitos com as colegas sobre nós. Porque iríamos aquelas horas? Sempre e com aquele ar feliz e descontraído como se a vida fosse nossa. Se fosse em qualquer restaurante no centro de Lisboa ou do Porto quem nos notaria? Ninguém. Nem a nós nem às horas a que almoçavamos, nem às mãos e pés entrelaçados.


Quando foste a primeira vez a Paris por causa de uma exposição das últimas que fizeste voltei áquele restaurante chinês nos subúrbios de Lisboa. Parece-me que nunca cheguei a contar-te...passou a oportunidade ou nem sequer me lembrei. Tivémos tantas coisas a resolver nessa altura que provavelmente nem me ocorreu mais este episódio.
O restaurante estava exactamente igual ao fim de tanto tempo. As cadeiras continuavam vestidas de vermelho com o assento já coçado de tanto uso.
A mesa onde costumávamos almoçar também lá estava, ao canto.
Almoçávamos sempre já tarde, sempre "fora de horas", depois de nos termos perdido em nós: nas nossas conversas, nas nossas histórias, nos nossos suores, nos nossos amores e nas confissões desejadas.
Chovia, embora o ar estivesse quente e abafado. Estavam cerca de vinte e quatro graus e em Agosto não seria suposto estar a chover tanto. Talvez uns chuviscos, mais nada.
Como me impressionaram sempre as cadeiras vestidas de vermelho! Com o tempo o tecido estava, de facto, mais gasto e menos piroso: a cor estava mais apagada, parecendo menos uma "casa de meninas".

Falei de sonhos comigo mesma enquanto engolia o chop-soy de galinha e o pato à Pequim. Comparei sentimentos, ilusões e o resultado de promessas desiludidas, não cumpridas. Ofensas, mágoas. Facturas pagas e por pagar, e a quem. Batalhas ganhas, confianças e esperanças mais fortes, tranquilidades e tomadas de consciência.
Estava mais rica relativamente a mim e à vida. Mais pobre em relação a esperanças e a ousadias. A golpes d’asa. Voaria certamente mais alto em pensamento mas teria passado a andar com os pés mais assentes na terra. E por tudo isto não existem culpas ou culpados. Existem responsáveis e responsabilidades. E aquela eterna separação a que estávamos condenados. A tua vida lá e a minha aqui em Portugal, sem capacidade para arranjar um trabalho em Paris.
Desde que ali começámos a almoçar também nós tínhamos mudado, mesmo sem termos notado. O teu perfume já não me trazia as mesmas sensações. Embora com o mesmo odor, as associações tinham passado a ser outras. Talvez mais complicadas, mais elaboradas. Mas com o mesmo desejo.
Mas passei a saber exactamente até onde podem ir essas sensações e desejo, e não passam para lá dessa linha traçada pela experiência que foi a nossa vida.

De regresso ao Areeiro recordo que no radio do táxi a cantora encanta: “I choose never to forget...”
Desde que cheguei a Lisboa reparei que quando paramos momentaneamente o carro, nas inúmeros e várias paragens a que nos obrigam os semáforos citadinos cada vez com pior sincronismo entre eles, os nossos vizinhos, igualmente momentâneos, olham-nos e invariavelmente olham para as nossas mãos procurando, penso eu, qualquer sinal de comprometimento. Se as feições agradam procuram seguidamente a situação emocional vivida. E os vários tipos de alianças usadas darão de imediato e ao primeiro olhar a resposta para uma possível aproximação.
Por outro lado, contrariando esta sistemática tentativa de passar o tempo talvez pelo infernal trânsito da cidade, pareceu-me que as pessoas andam muito adormecidas para que alguma faísca se solte fora dos locais habituais do chamado engate – discotecas, bares, clubes de danças latinas, aulas de aprendizagem zen, ginásios e outros que tais.
A dormência mental é tanta que quase que consegue ultrapassar a emocional.



Mas repara-se que a traição está na ordem do dia. “Paquerar”, expressão usadas não só pelos brasileiros residentes em Portugal, passou a ser normal através vidro lateral do carro ou num supermercado ou até numa paragem de autocarro. Num café ou num consultório médico aproveitando a fragilidade de cada um. É um não ser que não leva a lado algum mas que tenta preencher o vazio das vidas que são diariamente transportadas de um para outro lado dentro duma cidade como Lisboa. É como se todos os dias aqueles seres passassem de uma margem para outra de um rio que vai sempre correndo, que tem vida, cor e mágoas. Mas que eles nem a pontinha do dedo conseguem molhar. Limitam-se a ir de uma margem para a outra sem conseguirem quebrar as pontes e mergulharem nas profundezas das águas.

Quando era miúda fazia de conta que era um extraterrestre dentro de uma nave transformada virtualmente em automóvel, enquanto fazias essas viagens diárias. E ia adivinhando o que sentiam as pessoas que eu via apercebendo-me pelas expressões faciais, pelos olhos e pela sua postura física como viviam e com quem viviam essas as pessoas. Do que sentiam, do que amavam, do que morriam, do que não queriam e da sua falta de consciência em estarem vivas.

O taxista resmungava tão ruidosamente que me arrancou literalmente aos meus pensamentos. O que se passaria? Olhei pelo vidro do carro. Fiquei espantada pois ali ao pé, no passeio, um ser com duas pernas, dois braços e com uma cara no alto, dava pontapés fortíssimos e murros nos parquímetros em busca de moedas. Esta cidade funciona?
Mas não tinha sido este incidente que causara os arrufos do condutor. A fila de carros tinha parado para dar passagem a uma ambulância e, em seguida tinha havido um condutor que se atravessara no cruzamento.
A sirene da ambulância a tentar romper no meio dos automóveis era um safanão emocional depois de ter visto uma cerimónia tão bonita.
Pensei que talvez tivesse sido um acidente de viação. O tráfego é constantemente retardado pelos acidentes de viação que acontecem em intervalos praticamente regulares dificultando a chegada aos destinos dessas pessoas.
O carro parou tantas vezes que muitas delas foi ao pé de montras, cabeleireiros, cartazes de produtos de beleza, etc, trazendo as tentações desta sociedade de consumo que tenta encher-se de coisas para anular o vazio cultural e emocional de vivências sem vida.
Há cartazes colados pelas paredes dos prédios, espalhando pela cidade o apelo à ida aos teatros, espectáculos de bailado, música, folclore, eu sei lá. Os títulos são apelativos ao ponto de contarem histórias: “Estamos condenados um ao outro”, “A vida de Vincent Van Gogh”. Mas sei que as salas de teatro estão praticamente vazias o ano inteiro.
Oiço na rádio o anunciar de descontos num supermercado e nos programas para férias. Programas em cruzeiros e em praias, férias na neve ou sei lá que mais!
E vem-me à cabeça o nosso amor e as saudades que se agudizam sempre na altura das férias e das festas!



No último Natal que passámos juntos escrevi-te à laia de pedido:
“-Meu amor, quando pensares em fugir desta vida avisa-me, por favor! Não quero ficar à espera, quero que me leves contigo. Vestir-me-ei de azul, com flores na saia e peixinhos dourados nos cabelos. Os sapatos serão os rasos para poder correr. E nos meus braços levarei as mãos para podermos andar de mãos dadas”.

Acariaciaste-me a face com ternura e abanaste a cabeça.
“-Não querida, estou com os olhos bem despertos vendo a imagem dos nossos corpos como se exterior a nós fosse capaz de ficar. A ver. A ver-te amar, querida Mar. Não me procures se desaparecer primeiro que tu, prometes? As ausências e as demoras que vejo quando me olhas sem sossego são o fio que escreve o que se tiver de viver. Não me procures, então, sem que o tempo te tenha dado um sinal de mim. Se assim for talvez voltes a acontecer e a tua boca abrir-se-á num novo sorriso de chegada, os teus olhos brilharão de novo e o teu calor envolverá os murmúrios que vivem no interior de alguém.”

Ambos sabíamos que estavas condenado e que a doença não te daria tréguas a partir de determinada altura que não sabíamos quando chegaria. Não falávamos disso nem de futuros.

Como me dizias sempre: “- Olha, sabes que mais?...Um copo antes e um café depois!”