Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, março 29, 2007

CADA VEZ MAIS IGUAL



Aproveitando o facto de estar em Lisboa agendara um encontro com Francisco, na editora que mantinha perto da Avenida de Berna, por causa da impressão do catálogo da retrospectiva da obra do Miguel. Seria melhor vermos tudo “in locco” apesar de todas as ferramentas tecnológicas de comunicação ao nosso alcance para podermos trabalhar à distância.
Confesso que cedi por ser um pretexto para rever um velho amigo, apesar do tempo disponível não ser muito para tantas andanças antes da cerimónia. Assim, seria um encontro breve antes da cerimónia religiosa do casamento de Ana pois, de seguida, partiria logo para Paris.
Entre a minha casa e a editora seriam uns quantos quarteirões, uns quinze minutos ou pouco mais.
Contrariamente ao habitual cheguei atrasada. Nunca foi e continua a não ser costume meu fazê-lo. Sou daquelas pessoas que ainda se preocupa em cumprir horários e obrigações, em ser responsável, enfim, tipo “dinossauro em vias de extinção”, como me apelidaram os filhos.
Mas esse nome assenta-me como uma luva quando chego a Portugal depois de uma longa temporada fora como tem acontecido nos últimos anos.
Ao chegar a Portugal percebo que pouco ou quase nada mudou desde que fui viver definitivamente para Paris há mais de dez anos.
Reparo que as pessoas que me rodeiam continuam preocupadas com aparências e conveniências, sem notarem o quanto estão ocas e afastadas da realidade e do mundo.
Comparativamente devo ser uma grande “chata”, pois “há que curtir sem stress!”...frases feitas que actualmente ouvimos um pouco por todo o lado, principalmente entre as pessoas mais jovens. A preocupação em se ser conscientemente respeitador dos outros, dos compromissos e dos sentimentos é, infelizmente, “démodée”.
Entristece-me esta inversão ou reconversão de valores, mas alimento a esperança na certeza que este ciclo também irá ter a sua reviravolta e tudo encontrará novamente o seu equilíbrio.
Mas, mesmo ao contrário do habitual, nessa manhã cheguei atrasada por causa de um homem.

Ao passar pelos jardins da Gulbenkian reparei na figura de um homem com um sobretudo escuro, comprido que enxugava os olhos com um lenço.
O lenço era tão branco que a figura do homem parecia um acessório.
Visivelmente comovido ou triste com algo pousava demoradamente o seu lenço nos olhos, parando de vez em quando para se encostar a um dos muros dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian.

Parei. Hesitei em me aproximar enquanto o olhava sem que me pudesse ver. Necessitaria de ajuda? Não me parecia que estivesse com alcool a mais ou qualquer outro tipo de droga. Não teria muita idade, talvez uns sessenta anos e não parecia padecer de nenhum problema físico a nível da locomoção. Mas acreditei, pelo que via, que não estivesse a sentir-se nada bem.
Correndo o risco de ser tratada com menos cortesia cheguei-me perto dele e perguntei:

“ - O senhor precisa de alguma coisa? Posso ajudar? Sente-se bem?”.
Destapando os olhos olhou-me como se mais nada se estivesse a passar à nossa volta: nem os carros freneticamente apitando para passarem pelo meio dos inúmeros buracos no alcatrão, nem as pessoas correndo apressando a própria morte.
Nada existia para aquele homem além da sua mágoa e do seu lenço branco.

“- Obrigado, menina. Mas não pode devolver-me a Flor...a minha mulher morreu... e eu não sei viver sem ela...nunca tinha imaginado ficar assim ...e agora não a tenho...”- balbuciou o senhor evidentemente emocionado e confuso.
Dei-lhe o braço e entrámos nos jardins que continuam minimamente arranjados e conservados, apesar de públicos.
Sentámo-nos num dos bancos de cimento e fui fazendo perguntas simples e objectivas para tentar ajudá-lo a referenciar-se e também pensando egoistamente como me iria desenvencilhar do assunto mantendo a consciência tranquila.
Família, filhos, amigos e morada foram os temas que tentava a todo o custo falar com ele.
Amor, solidão, vazio eram as repetidas respostas que obtinha.

Chorava como um menino e tinha idade para ser avô. A cabeça entre as mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos.
O sobretudo parecia enorme, como se não fosse dele.
Fiquei a seu lado, com o meu braço por cima dos seus ombros tentando dar-lhe algum conforto.
Tive tempo para reparar que vestia bem, com roupa cuidada, sapatos caros e um bom relógio...Ensinaste-me, há muito tempo, que para um homem estar elegante basta usar um bom relógio, um elegante par de sapatos e um cinto novo.
Lembrei-me das horas combinadas com o Francisco para a nossa conversa sobre o catálogo e passou-me pela cabeça a dúvida se teria feito bem em me ter metido naquele sarilho. Não conseguiria deixar uma pessoa sozinha naquele estado de desespero.

“- Venha, vamos tomar alguma coisa quente. Aqui não estamos confortáveis”- disse-lhe acabando por convencê-lo a levantar-se.
Na pastelaria pedi dois chás de camomila – receita milagrosa para quase todos os males, pois não faz bem nem faz mal, mas convence – e uma torrada com manteiga.
Visivelmente agradecido olhou-me directamente nos olhos, pela primeira vez ao longo daqueles minutos que já tinhamos passado juntos. Os seus olhos cinzentos tinham a profundidade de quem vive um grande sofrimento depois de perder a razão de viver, talvez a perda de um grande amor ou de uma grande companheira.

“- Oiça, não o conheço mas entendo que não está bem...que este foi um momento de fraqueza que tem de superar. Falou-me da Flor... a sua mulher? – comecei para tentar que o diálogo fluisse.

“- Sim, a Flor morreu há mais de uma semana e agora não sei o que fazer...as filhas já regressaram às suas vidas, aos empregos, aos netos e aos maridos delas...e eu continuo a acordar sem ela, a viver de recordações, de gestos lembrados, com os hábitos da casa que construímos...mas ela não está lá para tratar de mim, não fala comigo, não me ralha por fumar às escondidas...não sei o que faço quando tenho fome...como uma coisa ou outra sem sentido algum. É tudo tão estranho agora, não sei viver assim!” – finalmente verbalizando a sua dor.
Fiquei mais calma percebendo que aquele homem, de quem nunca soube o nome, estava simplesmente a passar por um desgosto. Não que um desgosto seja fácil ou simples de ultrapassar, mas fiquei satisfeita por não ter qualquer mal de saúde.

“- Tem telemóvel? Mostre-mo, por favor. Qual o nome de uma das suas filhas...a que está mais perto de si?” – perguntei já com o telemóvel na mão.
“- Olga...a Olga é a que sempre ficou mais connosco. É a mais parecida com a Florbela, a minha mulher...”- balbuciou comendo o resto da torrada.
“- Está bem, então vamos lá ligar para a Olga!”.

Mais tarde quando cheguei ao pé do Francisco pedi-lhe desculpa pelo atraso.
“- Estás muito mudada, Mariana!”- estranhou.
“- Enganas-te! Estou cada vez mais igual a mim mesma!” – respondi-lhe sorrindo ao sentir aquela calma que nos completa a alma num dia sem sol.