Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sábado, março 26, 2005

Toy e Boneca, o primeiro namoro da minha vida.

Toy e a namorada



Morava numa rua onde só passaria um carro uma ou duas vezes por semana, se Deus assim o quisesse! Excepto o do meu pai que saía e entrava todos os dias da garagem de nossa casa para ir trabalhar para Lisboa.

Morávamos em Cascais, no Bairro do Rosário: não faço ideia se ainda existe esse lugar e como se chamará hoje.

Mas todos nós, eu e os miúdos meus amigos brincávamos livremente no meio da rua sem sequer ter de olhar para ver se algum carro poderia destruir as balizas que fazíamos com pedras e camisolas enroladas.

Num domingo de Primavera o meu pai disse-me para não ir brincar para a rua pois íamos sair.
Entrei no carro e fomos até à Quinta das Laranjeiras, perto da Malveira, a casa dos primos do meu pai. Íamos buscar um cão. O meu cão. Seria o meu cão e ficaria à minha responsabilidade conforme instruções do meu pai.
No carro ia acenando com a cabeça a tudo quanto ele me dizia com receio de algo poder alterar aquele grande presente.

Chegámos e entrámos no portão da Quinta . Lembro-me que os meus joelhos tinham mais vontade de correr do que de andar até à porta da casa, mas por outro lado o coração batia tão descompassado que tive medo de o vomitar.

-Anda, vem! – gritou-me o meu primo António.
E lá fui, desta vez já a correr. Vi uma ninhada de cachorrinhos todos eles muito fofos e bonitos. Qual iria escolher? - pensei centenas de vezes enquanto os adultos falavam, falavam, falavam, como se o mais importante não fosse a escolha do meu cachorro!

Não consegui escolher nenhum. Às vezes parecia mais um, depois era o outro que fazia um focinho mais engraçado e a minha vontade pulava de um para outro e ainda para outro e...

- Zé, vem com o pai.
-Mas eu ainda não sei qual quero levar...

O meu pai pegou-me na mão e incentivando-me a obedecer-lhe.
Viemos ladeira abaixo e só via o portão da quinta aproximar-se cada vez mais.
“Fui estúpido! Devia ter apanhado o primeiro e pronto, já tinha um cão!”-pensei eu várias vezes já com cara de embezerrado.
Quando chegámos junto ao portão o meu pai virou-se e eu imitei-o.
Olhei para cima o meu pai perguntou: “Qual é o nome que quer dar ao cão?”
“Toy”-respondi.
“Então chame-o!”.
“Toy”-gritei. E nada... “Toy, Toy, Toyyyyyyy!”.

E, lá ao longe, apareceu a correr de maneira descontrolada um cachorrito preto com as orelhas compridas a abanarem em tamanha maratona que quando lhe peguei estava ofegante. Mas ambos com ar feliz.


A nossa casa era, de facto, um paraíso na terra .
A mata da Quinta da Marinha vinha até ao muro de baixo do nosso quintal, pois ainda nem sequer se pensava construir nada nesse local.
Essa mata era o habitat natural de texugos, ratos, esquilos, raposas, eu sei lá!

Um belo dia, da janela do meu quarto, reparei que o Toy tinha uma namorada a quem deixava comer da sua comida e beber da sua tijela de água. Estranhei, pois o meu cão preto era meigo para os de casa mas não admitia invasão de território, muito menos por outros animais.

Cuidadosamente desci as escadas e fui até ao jardim. Mal tentei chegar perto o animal castanho dourado fugiu apressado e com uma ligeireza anormal para a raça canídia.

Fiquei atento e dois dias depois consegui vê-los novamente em ameno convívio.
O Toy muito grande, peludo e preto e o outro pequeno, nervoso, castanho dourado e...com um focinho muito comprido e de orelhas espetadas: era uma raposa!

“Não pode ser!”- pensei na altura. A vida ainda não me tinha ensinado tudo o que hoje sei e não entendi que o Toy se tinha apaixonado. E por uma raposa.

E os dias foram correndo, os meus pais acabaram por saber o que se passava e todos conseguiam ver a Boneca-assim se chamava a namorada do Toy- mas à distância. Ninguém se podia aproximar dela, pois ou ela fugia ou ele não permitia.

Quantas vezes me lembro de matilhas de cães vadios passarem na rua seguindo o cio de uma cadela e lembro-me do Toy protegendo a Boneca pondo-se em cima dela com o seu dorso e patas largas e possantes. E quando o perigo passava lá saia a Boneca debaixo da sua casa protectora!


Mas as pessoas não entendem o amor. A beleza da vida. E alguém fez queixa à Câmara acerca de uma raposa perigosa e supostamente “domesticada”. E um dia, antes de ir para a escola ouvi o barulho de um motor. Estranhei. Quem seria ? Nunca ninguém passava ali.
Era a carroça da Câmara. Saltaram de lá três homens. Dois deles tinham cordas e redes.
O Toy ladrava consecutivamente, com ar cada vez mais aflito . Mas o meu pai teve de o agarrar pela coleira.
Apanharam a Boneca com as ditas redes antes que ela pudesse fugir: o amor tinha amolecido a sua antiga ligeireza. E levaram-na.

Chorei, gritei, revoltei-me. Tudo em vão. “Tinha de ser”- disseram os meus pais.
O Toy voltou para a sua casota e começamos a ouvir latidos que vinham lá de dentro.
Fomos ver: estavam lá dois cachorrinhos: um macho que parecia uma raposa e uma fêmea toda preta de orelhas compridas.
O cão ficou connosco - era o Vip.
A irmã foi dada ao nosso vizinho da frente .E o Toy morreu passadas seis semanas. De tristeza? De desgosto? Ou de doença, conforme disse o veterinário?