Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

terça-feira, maio 24, 2005



Ainda não sei o teu nome.
Nem sequer onde moras.
Mas conheço a cor da tua alma.
Assim, sentir-te-ei logo que te aproximares
mesmo antes de bateres à minha porta.


DORME HIPOCRISIA


Dorme hipocrisia.
Deixa-te dormir,
desinteressada e lerda
enquanto me afasto
tornando intransitável o caminho de volta.


Descansa,
como sempre fizeste,
pensando que em minhas mãos
descansavas o cesto dos afectos,
dos alentos
e da força do amor.

Dorme,
enquanto pego na mala
vazia de nós,
e parto para um outro lugar
para outra amante,
para uma qualquer outra.

Endormece-te,
E desliga as luzes e os telefones
que sempre aborreceram os teus amuos
quando não queres entender
por incapacidade ou por preguiça.

Desliga-te,
pois assim não me verás partir
afastando-me pela estrada branca,
que me leva até não sei onde
e me empresta o alento que preciso.

Dorme,
e acorda só
Quando já não te puderes enganar mais
com os sonhos que não consegues sonhar
sem mim.

Dorme,
vai dormindo sempre.
Como sempre fizeste.
Mas não esqueças de deixar o candeeiro aceso
e de fechar a porta aberta
porque, desta vez, não vou voltar.


PRIMAVERAS



Saberás porque escrevo?
Saberás o quanto queria igualar-me ao som dos pássaros
nas manhãs de Primavera,
tal começo de mundos novos e sem mácula?

Mundos fantásticos e fantasmagóricos
como as imagens e histórias dos pesadelos que diariamente vivo?
Gentes sem alma,
brinquedos quebrados
e canções de roda que não têm fim.

Livros cujas páginas são alvas folhas
sem letras,
sem vida ou conceitos,
que por mais que os procure não se leem?

Imaginários farrapos
que procuro juntar
num frenesim de ter sentido?

Saberás porque
imagino
que o amor pode ser como o sinto
e como o vejo?

Para sobreviver à mediocridade
e às recordações de quando fui criança.

Para sobreviver
aos amantes que me envolvem
e não me veem.
Nem vêm amar-se.

Saberás porque me agradam os sabores
fortes e doces, amargos e aromáticos
das ervas e dos manjares novos
e inéditos?

Porque não suporto mais
o usado mascar da rotina
e do odor do parceiro feito destino.

Saberás porque sujo as mãos
na tinta
tentando criar algo que não existia antes?

Para tentar deixar uma impressão digital
(pode bem não ser a minha!)
gravada na tábua dos que viveram
sabendo que a vida, afinal,
não é algo que se conquista.

É um encontro quando acontece
É um desencontro quando simplesmente se vive.

segunda-feira, maio 23, 2005



SEMPRE É NADA



Olha,
quando tornar a ser menino
e te der a mão para afastar o medo;

Quando voltar a dar-te o braço
para te entregar novamente no altar
afastando-me com um sorriso
e com os teus olhos pregados aos meus;

Quando tudo for novamente tudo
outra vez e de novo;

Quando da minha mão tiver novamente caído terra
nas tábuas que encerrarem o teu corpo;

Quando tornares a ouvir-me chorar
respirando o mundo que me acolhe;

Quando tornares a correr para casa
procurando o meu conforto depois das brigas na escola;

E quando voltar a sentir-me em casa
com o cheiro a bolo quente que tirarás do forno, ainda húmido;

Quando tornar a ir à escola
porque foste apanhado a fumar o teu primeiro cigarro;

Quando fores a correr comigo nos braços
porque a febre não baixa e a ansiedade aumenta;

E quando, e quando
e quando tornar a acontecer outra vez.
Comigo e contigo e com ele, e ela e com eles.
Sem sabermos quem é quem,
quantos e como somos...

Vais entender
Vamos perceber

Que a vida é um mundo de círculos,
Que brincam connosco e com ela própria.

E que a existência não é;
Sente-se;

E que o que hoje está no alto amanhã será em baixo,
E o que nos comove hoje amanhã será a graça
do que move e separa.
Do que junta e petrifica.

E que o amor que vem de dentro para fora e
o que sofremos de fora para dentro
é uma e a mesma coisa
para sempre.

Porque o sempre nunca foi nada.

Olha,
quando tornarmos a ser meninos
não te esqueças de me dar a mão.


ASA DE ANJO


E hoje eu pergunto:

Quem é que esta noite embalará o meu sono?
Quem me retirará os óculos depois de adormecer,
e me aconchegará as mãos à roupa macia e quente?
Quem acalmará o meu dormir
chamando o meu nome de mansinho?

Quem é que esta noite embalará o meu sono?
Até que eu deixe de falar em sonhos e abrace quem me ama
amarrotando a almofada branda no meio das coxas já molhadas?

Quem é que esta noite embalará o meu sono?
Para que durma mais uma noite descansada
desta vida rija e amargurada
sem cais donde partir para poder chegar?

Quem é que esta noite embalará o meu sono?
Cobrindo os meus beijos com algodão de nuvens
para que respire branco toda a noite e não receie o acordar?

Quem é que esta noite embalará o meu sono?
Quem velará por mim e pelos meus desejos
e me amará sem pretextos, calando devagar as aparições
dos fantasmas e descrentes
do país de quem não sonha.

Quem é que esta noite embalará o meu sono,
Se comigo não estás meu amor?

sexta-feira, maio 20, 2005



Ontem à noite, depois da sua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês de junho, esse mês que inaugura o Inverno. Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba. Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque. E depois comecei a escrever...
Marguerite Duras, Textos Secretos

quarta-feira, maio 18, 2005



VEM


Vem.
Vem, pois quando amo
amo assim.
Sem dor, sem mágoa e
sem esperar o amanhã que pode ver-nos.

Vem,
Vê-me com as mãos de quem não sabe
como se de o cego se tratasse,
toca-me com os lábios do tempo que não pára,
lábios sem tempo que não sabem.

Vem,
Mas não te lembres de ti.
Chega-te sem teias, sem aranhas
que o meu corpo é de veludo cor de sangue
até ao amanhecer do que chamas ser amor.

Vem,
E não me deixes dormir
pois para a eternidade já pouco falta
e nós, de bocados feitos, chegaremos lá bem depressa.

Vem,
Não olhes para trás de ti,
nem para trás do véu que uso quando amo
de espuma feito para te embalar
como embalam as sereias os marinheiros.

Vem,
Foste marinheiro do meu desassossego
da juventude,
do medo e do ciúme;
e do meu sossego foste filho.

Vem,
Por ti,
e por mim vem ter comigo
e emaranha-te
nos meus cabelos cor de fogo,
nos meus pelos cor de mel
e no perfume que de dentro de mim exala para te prender.

Vem,
Vem que te quero ter,
vem que me quero assim,
vem que te quero amar.
Sabendo que por momentos serás o único
e melhor amante
o meu mais querido momento de verdade.

Vem
E deixa-te afundar nas veias do meu pescoço,
no abraço do meu colo.
Vem que te preciso amar
hoje.

E depois não te lembres mais de mim.
Reconhece-me tão somente como a matriz do teu destino.

Hourigan



NATUREZA MORTA


Natureza morta
hoje
sou eu.
Deixei cair as maças
que saltitavam no meu regaço morno.
Deixei de ter o aroma
das donzelas que esperam.
Deixei cair os braços
que abraçam.
Deixei que me vencesse
a vida que me falta.
Natureza morta
hoje
sou eu.

domingo, maio 15, 2005


Bjoern


VIAGEM

Neste domingo fizemos juntos uma viagem.
Não a primeira, não a última.
A última será sempre solitária.
Talvez a nossa primeira, mas não a nossa última.
Entre nós foi tecido um fio que só sabe quem o tem
e só o vê quem olha com a alma.

A nossa viagem foi, realmente, só nossa .
Só tu e eu, e uma bolha de ar que nos levou até ao fundo...
... do ( teu) mar?
Não será também assim que começam amizades ?

Gostei muito de estar contigo.
Aqui fica mais um pedacinho de mim e da viagem que fiz contigo em forma de palavras.

sábado, maio 14, 2005


PatrickGarbier

ESTA NOITE

No reino de Hisbar as bibliotecas ardem esta noite.
As invasões sempre foram assim.
Encostado à porta de sua casa o velho bibliotecário olha a lua cheia de labaredas.
Segura firmemente o livro que tem na mão: Diálogos.
Sabe que o seu caminho agora se assemelha mais a um monólogo.
Afastando os olhos da cidade violada, toma convictamente o caminho do deserto.

quinta-feira, maio 12, 2005



TERESA


Era o dia do meu 16ºaniversário.
A menina Teresa mandara-me um presente embrulhado em papel azul : “Parabéns para o querido João”.
Soube logo que de um livro se tratava!
Seria um dos que ela costumava ler lá na loja, durante a hora do almoço?
A capa com fundo branco tinha impressa a fotografia da autora: os olhos pareciam falar.
Os sonetos de Florbela.
“- Matou-se por amor e desamor dela e dos outros”- explicara-me a Teresa.
O livro com aqueles olhos que falam continua a fazer-me companhia, agora que a menina Teresa já não existe.


SEM

Este é o livro das cem histórias das cem palavras.
Sem letras e sem palavras somente conseguiria imaginá-las e contá-las. Não as conseguiria escrever.
Esta é a centésima história do livro que certamente irá marcar futuramente a minha vida.
Escrever-me ou descrever-vos somente com cem palavras é tarefa sem retorno por não mais acabar: cem atrás de cem e mais cem a somar às outras cem. É como a vida.
Uma situação a seguir à outra, um amor atrás de um desamor, um agrado após um amargo de boca.
Esta é mais uma história de cem palavras do livro das histórias sem palavras.
ESCURO CONFORTO FEMININO

Até há cerca de quatro anos acordava com carícias masculinas. Depois separei-me e durante longo tempo o acordar era bem mais solitário e difícil.
Mas mesmo durante todos esses anos, e apesar da meiga companhia, era um processo longo, demorado, até que o meu corpo e a minha mente se conciliassem e tomassem a árdua e dolorosa decisão de que acordar era a palavra de ordem naquele momento.
Desde muito pequena que acordo cedo, invariavelmente, e até hoje não me habituei (será que devo perder a esperança?).
O acordar cedo e o levantar-me da cama logo de seguida é algo que me acompanha há anos, à excepção de alguns dias de férias- poucos, muito poucos- em que não estávamos com as crianças.
Nesses dias os afagos masculinos eram ainda mais meigos, ainda mais masculinos quase sempre a encaminharem-se para um fim apetecível...mas muito ensonado!

Agora acordo com uma agitada e persistente companhia feminina.
Muito mais quente, sem dúvida alguma, meiga q.b., mas muito mais perspicaz e capaz de me entender. E de entender a minha dificuldade em me levantar da cama- cada ano que passa custa-me mais!

Sinto-a a roçar a pele da minha mão, depois vai subindo pelo meu braço até ao ombro.
Sinto um arrepio quente perto dos meus seios cheios. E, ainda adormecida, viro-me para o lado contrário na esperança que ela desista e me deixe dormir mais um pouco.
Mas não, ela não!
Se há teimosia e persistência ela encarna-a na perfeição.

Torno a sentir-lhe o toque macio, mas desta vez no meu pescoço. Sinto o seu hálito no meu pescoço e arrepio-me quase sempre.
Todas as manhãs...mesmo aos domingos.

Não desiste de tentar que me levante da cama assim como eu não desisto de a tentar dissuadir. Lanço a mão para as minhas costas procurando-a .
Afago-a, mexo-lhe nas orelhas e o nosso calor torna-se insuportavelmente acordado.
Penso, então, com bastante mais nitidez, que devem ser mesmo horas de me levantar da cama. Mas ainda fico um pouco mais.
Mas ela não desiste. E eu sei perfeitamente que o nosso ritual matutino irá continuar. E deixo-me ir neste gozo repetido.
Sinto os cotovelos serem mordiscados alternadamente como quem morde e foge em tom de provocação. Mais uma e outra vez.

Por fim, sinto que ela me toca por baixo do edredon com carícias menos meigas mas mais presentes. Mordisca os meus pés que, entretanto, se foram mexendo no meio dos agasalhos.
Até que, por fim, ela, no seu jeitinho atrevido roça os seus pelos nas minhas coxas ainda quentes da noite.
E assim decido que o duche está à minha espera.

Sento-me na borda da cama, enquanto ela salta ao meu lado, frenética, de cima da cama para o chão e vice-versa.

Só naquele momento dou por falta daquele ruído morno que até então me acompanhava- com o qual acordo todas as manhãs- o seu ronronar. O seu motor de vida. O modo de mostrar o seu prazer em estar comigo.

E lá vai ela atrás de mim até à casa de banho. Depois até à cozinha, depois até à mesa da sala, onde se senta calmamente, atenta, observadora dos movimentos típicos de pequeno almoço de uma mulher.
Observa e regista, certamente.
Às vezes chego a comentar que os gatos devem ser os enviados dos extraterrestres para nos observarem.

Pois é, mas é assim que hoje em dia, desde há uns anos, acordo com uma companhia feminina que sabe exactamente como me deve acordar e nunca se engana nas horas. É a minha gata.
É preta, magricela, olhos verdes (ou amarelos?), e tem nome de desenho animado: Baguera.
É arisca, cheia de personalidade, engraçadissima e vou certamente sentir mais a falta da sua presença na minha cama que da anterior. Alguém que me perdoe a franqueza!

terça-feira, maio 10, 2005


A minha sobrinha Inês sempre teve dificuldade em se expressar.
Em expor os seus sentimentos, em deitar fora ou guardar o que ia sentindo à medida que crescia e que a vida não era o que ela gostava que fosse...Foi complicado o aprender que o que desejamos não é, quase sempre, a realidade que temos de encarar. E que o melhor será entender isso modificando, dentro de limites possíveis, os acontecimentos menos bons da nossa vida. E às vezes aceitá-los.
Mas pelo que vejo na tímida escrita dos seus 15 anos, e apesar dos motins domésticos e dos acidentais confrontos entre gerações (habituais, aliás, em qualquer charneira pais-filhos), o que os jovens de hoje querem é o mesmo que nós queríamos há anos atrás e exactamente o mesmo que há dezenas de anos os nossos pais e avós e, e, e... queriam: amar, ser amado, ser aceite, aceitar e não sentir a solidão no seu lado negativo- o de ser deixado.
No meio da turbulência do segredo de quem tem ou não tem charros-e de quem os fuma-, da tentativa de impor aos pais as saídas à noite para discotecas mais ou menos de "crescidos", de conquistar palmos de território proibido, o fito e o fim é sempre o mesmo: amar e ser amado. E não nos enganemos: também pelos pais.


Kikas, fico muito feliz por teres começado a escrever(-me). É uma forma de aprender a lidar com os sentimentos que tens, é mais uma forma de conversares comigo, contigo e com o mundo.
Aqui fica a tua historiazinha.
Beijo à Inês.



História de Inês e de Pedro
no século XXI


Uma rapariga perguntou a um rapaz se ele a achava bonita, ele disse que não.
Ela perguntou-lhe se ele queria ficar com ela para sempre.
Até à eternidade.... e ele disse que não.
Então ela perguntou-lhe : se ela se fosse embora ele iria chorar ? Mais uma vez ele respondeu não.
Ela já tinha ouvido demais...
Virou-se e decidiu que se iria embora.
Assim que ela se virou, com as lágrimas a lavarem-lhe o coração magoado, o rapaz agarrou-lhe o seu braço.
E disse-lhe: Tu não és bonita és linda. Os teus sentimentos por mim e pelo mundo conseguem ser ainda mais profundos que os teus olhos,
mais doces que o teu regaço,
mais ternos que as tuas carícias,
mais verdadeiros que os teus lábios
quando me dás os teus beijos de amor.
Eu não quero ficar contigo para sempre...

Eu preciso de ficar contigo para sempre...
e não conseguiria chorar se tu te fosses embora...
Porque iria morrer..

de
Inês Paiva Raposo


sexta-feira, maio 06, 2005


Foto de Roland Cabon


A ESCOLHA



Tinha acabado de ler.
Quis testar o que o filósofo dizia.
Enchi pela terceira vez o copo e acariciei-o na minha mão
procurando saber se o sentia diferente
ou se me sentia a mim diferente ao pegar-lhe.
Não aconteceu nada.
Desta vez não estou entre os eleitos.

A Escolha foi escrita por mim e sentida por ti, num dia de Inverno.
Agora já é Verão.