Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

domingo, outubro 28, 2007

ESTAÇÕES


Já sentimos no corpo o Outono.
Mesmo com dias cheios de sol a temperatura muda de repente, esfriando muito antes do crepúsculo. A friagem faz-nos abraçar mais o próprio corpo, aconchegarmos a roupa e andarmos rapidamente.
Durante o Verão a temperatura convidava a estar na rua até de madrugada. Vive-se mais nessa época, estamos mais voltados para fora.
É hora de recolher.
A estação está a mudar. Do Verão para o Inverno, passando pelo Outono.
É como no coração. As estações do coração também mudam.
É hora de recolher.
O coração pede aconchego enquanto a alma já esfria com o Inverno.
Esperemos o próximo Verão.

sexta-feira, outubro 19, 2007

SEM BILHETE DE IDENTIDADE




Gostava de poder dizer das saudades.

Mas morrem-me na garganta

e na ponta dos dedos as palavras

sem nunca acabarem.

Respeito é o que as impede.
SOMBRAS SEM ABRAÇOS

Para certas pessoas
o dia nunca acaba
nem se vê.
Pegam o dia na noite
como num rasgo por viver.
Não sabem adivinhar
quando começa o futuro
ou se ontem foi passado.
Multidões de nós
enrolados para dentro
passam ao nosso lado sem sabermos bem quem são.
Sombras coladas à pele, aos ouvidos e sentidos
vendo a nossa vida como se fosse a deles.
Presenciam o que dói, o que maça
e o que nos mata sem sabermos
destruindo e construindo, à vez,
a nossa história.
Acendem velas douradas
quando desnudamos os corpos,
cansados de desvendar caras tapadas
com marcas de um destino emprestado.
Quem cuida assim de nós
sem pedir troca ou trocados
é porque precisa de ser
e ter cuidado
com a vida onde os dias nunca acabam.
Quando um dia a noite romper
precisam de descansar.

quarta-feira, outubro 17, 2007


MAGIA


Provavelmente todos nós somos especiais,
arcas contendo tesouros misteriosos, enigmas
que se desvendam e revelam em explosões de brilhantes e de cor.
Espectáculos de circo onde tudo poderá acontecer
num momento de sedução, ao toque da mão de um mágico.

Sábias pessoas essas que sabem o valor da vida
e com ânsia de nos conhecerem buscam o mistério
que há em nós ou noutro alguém.

É assim que se constroem as acrobacias da alma.

MEMÓRIA DE AFECTOS



Alexandre deixou-lhe debaixo da porta uma folha de papel dobrada.

" Meu amor,
a carroça do lixo que passa na tua rua - com aqueles barulhos estranhos de remoer o resto das nossas vidas - transporta uma carga incontornável na minha memória de afectos.
Houve um dia em que circulei atrás dela (forçosamente) 45 minutos…
Ela passava pela tua rua por volta da 1 hora da madrugada. Nesse dia despedimo-nos um pouco mais cedo do que era costume. A tua rua era muito estreitinha.

Um beijo. Alexandre."

Telma acarinhou as letras ao longo da face, fechou os olhos e sorriu esperançada que o tempo pudesse voltar atrás com o pensamento.

domingo, outubro 14, 2007

VOO

Juro que vi um pássaro pousado no teu ombro
enquanto dormias.
O teu peito nu descrevia curvas desconexas. Arredondadas.
Sempre tao redondas como o meu desejo.

O pássaro tinha tons esquisitos nas asas...
nao consegui entender aquelas cores.
Confunde-se com a crista do teu ombro nu, branco e adormecido
Como se me esperasse, escondido, mesmo sem saber quem sou.

Aproximei-me de mansinho
Povoando os teus sonhos decorados de pétalas vermelhas.
Toquei-te para ver se eras tu ou se eras os meus sonhos inventados.
Desapareceste logo depois
Que o meu dedo tocou no teu peito.
Eras tu mas fugiste de repente
Soltando o pássaro que pousado estava no teu ombro.
Devolveste-lhe a liberdade. E eu fiquei preso a ela.

sexta-feira, outubro 12, 2007


DUAS VEZES UMA










És um amor nunca ausente
por ser tua a maior parte
do que sou
sem remendos ou emendas.

segunda-feira, outubro 08, 2007

S O L I D Ã O



Olhos vazios de cor e de esperança. Corpos sem contornos, ossos despidos com um resto de vida caída, enroscados pelos cantos onde pensam encontrar algum conforto.
Escondidos do que não querem viver e da espera que já vai sendo mais longa que eles soltam, com voz trémula, palavras sem sentido dum passado onde só eles vivem.
Meu Deus, que sofrimento desmesurado sem consciência do que dói ou do que ficará por contar nesta espera de corpos engavetados em quartos brancos, sozinhos com as recordações do que já não conseguem saber.
Camas postas lado a lado como se de noivos se tratassem. Noivos numa valsa lentificada com odor a urina e a morte.
Esgares emitando sorrisos quando passo e aceno como se nos conhecessemos há muito.

Habituei-me a sorrir e a balbuciar qualquer coisa sempre que percorro aqueles corredores infinitos de tamanho e de tristeza. Tanto faz! Quaisquer palavras servem à avidez de ser eu a filha, a neta, a mulher, a amante, a sogra ou simplesmente a assistente social que lhes dê atenção ou esperança de ainda estarem a tempo de não ficarem sós e por ali.

Tento olhar sem ver para não ter de reproduzir vezes sem conta esta emoção de marcas cheia. Mas quem pode não ver?

Solidão, a enorme doença de tanta gente, adensa-se com os anos que passam. Histórias em que não se pode acreditar por decência: um irmão que deu a irmã como morta para ficar com a casa e os seus haveres. Um filho que não mais visitou a mãe deixando-a a gritar por ele durante meses a fio até a demência se ter instalado no lugar do desgosto.

Corpos desligados das cabeças, nos quais as feridas, o sangue e as dores já não se sentem. Já só existem para quem, como eu, os vê de fora. Para quem, como eu, não queria estar tão perto de esperas tapadas com lençóis brancos, em camas pequenas e nuas, caras sem nomes, iguais, sem cor, sem réstea de esperança e sem visitas.

Alguém grita de forma repetida e enlouquecida, mas já não incomoda ninguém. Só eu oiço realmente a loucura gritando repetidamente os mesmos sons. Marcas do tempo e marcas da morte em solidão.
A solidão é o castigo para quem morre velho e lentamente.


Peguei-lhe na mão. Cabeça rapada, olhos tão enterrados nos restos do rosto que mais pareciam água, lábios enrugados metidos para o sítio onde um dia existiram dentes. A língua saiu-lhe para fora da boca tentando pronunciar algo.
Adriana era o seu nome. Morreu esta tarde só comigo a seu lado e o resto das noivas da morte, todas vestidas de branco, que ainda lá ficaram.
Calma, muito calma, tentava levantar a cabeça de vez em quando e abria muito os olhos tentando ver…o quê? Não sei. A mim não me viu certamente. Sei que sentia a minha mão agarrando-a para que não a deixasse até adormecer. E adormeceu.

“- Era uma mulher muito bonita, sabe? Está no lar há mais de 20 anos e aqui na enfermaria há 3. Tem quase 95 anos se fizermos fé na cédula. Era muito bonita, a D.Adriana. Teve um filho de um senhor importante...parece que muito conhecido…levou-lhe o filho, não o perfilhou mas levou-lho. A partir daí teve muitos amores, era muito linda, era! Mas não queria tê-los muito tempo. Não confiava. Nunca mais confiou em nenhum, ao que consta. O filho ainda aqui veio umas duas vezes. Depois nunca mais o vimos... deixou de mandar ajudas como antigamente. A partir de certa altura a pensão dela era integralmente entregue ao lar. Passámos a ser a família dela. Boa ou má, fraca ou forte.”- ia contando a empregada auxiliar enquanto mudava as camas.

Há dias piores que outros, nos quais as sombras passam por ali como asas negras que batem nas esquinas da dor. Naquela tarde não tinha mais ânimo para não me deixar abater: gemidos sem fim, torturas de quem já não encontra a porta de saída, esperas com um fim anunciado e pleno de solidão.

Indescritível. Indecifrável. Incompreensível.

Nas mesas de cabeceira…nada. Nunca está nada.
A um canto, ao lado da única cama impecavelmente feita, reparo em três molduras numa das mesinhas de cabeceira. Fotografias a preto e branco. Retocadas e expressivas. Ela numa, ele noutra e os dois na terceira.
Ela partiu já há uns dias, disse-me a enfermeira. Não sabem a quem entregar as fotografias, pois ninguém as reclamou nem ao corpo!

“- As fotografias era para ela não se enganar quando chegasse ao céu. Tinha receio de não o reconhecer, dizia !” - continuou a enfermeira com um sorriso carinhoso. “- Antigamente ainda existiam histórias de amor, sabe?”- continuou olhando-me nos olhos como se quisesse falar da vida.

Caíra já a noite e não deveria ali estar. Ainda não fazia parte daquela história. Não reconheceria bem os andamentos e as deixas daquelas danças nocturnas.
A noite trazia novos ecos e novos encontros. Também ali bem como fora daquele inferno.
A noite, os fantasmas, as sombras e o eterno pesadelo de poderem ter partido sem saber.


Levantei-me e comecei a percorrer o corredor de volta para a porta. As portas das salas repetiam-se à esquerda e à direita, iguais, sempre iguais, com o mesmo cenário lá dentro.
O cheiro causava-me náuseas.
Aquele odor parecia vir de uma imensa panela ao lume que ia libertando vapor com cheiro a urina e a peixe podre. O chão parecia resvalar para dentro dos sorrisos tristes agarrados a bengalas e andarilhos. Mãos que me iam agarrando nesta corrida querendo agarrar a réstia de vida que lhes foge todos os dias.
Finalmente cheguei ao fim do corredor e abri a porta para a rua. Foi como se me libertasse do fundo do mar e finalmente deixasse entrar de novo ar nos pulmões .
Respirar fundo para sobreviver ao desmaio que avançava a passos largos vergando-me sobre o estômago.

Sentei-me no degrau de cabeça entre os joelhos, com as mãos na cara gelada, percorrida por suores frios e mãos de velhos.
Desatou-se um pranto dentro dos meus olhos e do meu peito apertado por aquele convento de fantasmas gritantes. Inevitável não pensar em nós.
O enjoo e a certeza da inevitabilidade sacodem-me as entranhas e não acalmam o pranto.

Com a mão alcanço a relva fresca e húmida trazendo-me novamente calma e força para voltar a passar aquela porta.

quinta-feira, outubro 04, 2007

REFAZER FUTUROS



Recostou-se na cadeira de braços deixando pender a cabeça para trás num derradeiro gesto. Pensava no que o passado tinha levado consigo. Na porta que finalmente fora obrigado a fechar para sobreviver a uma forte tempestade que acabaria por ser fatal. No que tinham sido um para o outro e no momento da separação. No deambular pelos caminhos da incerteza e da desconfiança. O momento em que se rendeu por cansaço.

“Afinal, o nosso amor nunca é igual ao amor que se recebe, por muito que o tentemos pesar numa balança de sentires e emoções. É mesmo assim, está sempre em desequilíbrio. Qual o lugar que ocupa o sofrimento?” – interrogou-se olhando o nevoeiro que se adensara desde a manhã.
Interrogava-se relembrando o caminho percorrido, as juras, os encontros, as mãos, as fugas, os atrasos, o passado e o vazio do presente. Um presente onde os silêncios alimentavam o dia-a-dia.
Inclinou-se novamente sobre a secretária: “- Passam-se semanas e o teu silêncio é perturbador. Creio que não queres ser incomodada e vais levando o teu fardo a bom porto e claro, estás no teu pleno direito. Tenho muitas saudades tuas e terei que viver com isso de forma educada e contida e por isso este mail só fará sentido se souber que está tudo bem contigo, ou seja, na mesma onda de sempre. Afinal o tempo passa, estamos outra vez no Outono e a vida continua não muito emocionante. Um beijo”.

“Mas a vida também é feita de silêncios.” – costumava dizer-lhe ao ouvido, quando permaneciam horas a fio encostados um ao outro.

Um sinal sonoro fê-lo voltar à realidade e percebeu que tinha recebido uma mensagem. Abriu a caixa de correio electrónico.

“A vida também é feita de silêncios... Aprendi-o há muito e da pior forma. Também contigo. Mas vou vivendo, refazendo-me, tecendo a teia da minha nova vida e não me queixo talvez por ter igualmente aprendido que de nada valerá. Sei que a vida, por vezes, pode não ser emocionante, ou melhor, sei que a vida é sempre emocionante mas que, por vezes, nós não conseguimos sentir essa emoção e essa fantástica experiência que é viver. Mas nunca devemos perder essa noção...não te esqueças que a reencarnação não é certa e que viver é certamente a grande maravilha ! Um abraço. Teresa.”

Teria sido melhor não lhe ter escrito! Tratá-lo como um amigo a quem se fala do tempo e dos silêncios??!! Bolas, por que seria que a bitola tinha sempre que ser o sofrimento.
Aquela dor surda que rói a vontade, o ânimo e a esperança. Aquela dor que fará sempre a diferença no próximo amor. Aquele odor que se recorda como ao perfume de quem se amou. Aquele tremor que nos remexe as entranhas quando ainda temos medo de nos perder.

Sentiu o chão debaixo dos seus pés. Acariciou o bichano que permanecera imóvel no sofá fazendo ninho no seu casaco e saiu atrevendo-se nos silêncios vivos da noite.
Buscava o tempo que sara as feridas profundas. Buscava tornar a refazer os futuros.

terça-feira, outubro 02, 2007

AS MÁSCARAS MASCARADAS




Maddie: coordenador da PJ de Portimão demitido após críticas à polícia inglesa

http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1306369&idCanal=95