Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, agosto 31, 2011

ESTRELAS

Antes de adormecer conto estrelas. São infinitas.

O tempo está tão estranho…parece que temos um clima tropical. Parece que voltei a Macau ou ao nordeste brasileiro: lembro-me que ao sair do avião mergulhei numa sopa húmida e quente que me embaciava os olhos e a respiração.

Esta tarde os passos ficam abandonados pela casa fora, janelas abertas à espera da chuva quente e da trovoada forte assombrando as paredes brancas.

Na estante os livros... com páginas amarrotadas de palavras amarfanhadas pela ânsia de te ver, de estar e ser contigo.

Os computadores são perigosos - acredito terem vontade própria, assim como as torradeiras ou os fios eléctricos dos automóveis. Descobri personagens de histórias guardadas. Tinha-as apagado da minha memória, mas os computadores guardam tudo ou pelo menos quase tudo.

Eram duas personagens de uma história que nunca me atrevi a acabar.

Mas dentro do computador lá estavam elas. Eles guardam, remoem, remoem e depois, um dia cospem-nos na cara assim umas histórias, umas memórias estranhas que nem reconhecemos como nossas. São insuportavelmente pouco selectivos e inconvenientes.

Também encontrei mais umas quantas outras personagens mais simpáticas as quais também já não reconheceria como minhas. Gostei de uma parte de um diálogo em que um diz ao outro que o mundo é muito pequeno para que não se voltem a encontrar. Humm... do que eu gosto mesmo é da imagem que isso me traz à memória, antes do mundo ter ficado demasiadamente grande.

Por hoje chega de descobertas na memória.

Já chove com força, finalmente. A trovoada avizinha-se também.

Vou regressar dentro dos pingos da chuva levando o que me ficou na boca, nos ouvidos e nas mãos.



A TEU LADO

Levemente pressionei o puxador da porta.
Fiquei longos minutos a olhar-te.
Dormias flutuante, aparentemente abandonada naquela cama enorme; os braços nus, espalhados pelos cabelos desalinhados, os lábios adornados com flores rosa pálido contrastavam com o dourado da pele que testemunhava o sol dos dias anteriores.
Do outro lado da cama uma almofada e um lugar vazio.
Receei acordar-te com os meus pensamentos.
Com leves passos aproximei-me deitando-me a teu lado continuando a olhar-te enquanto dormias.
Seria pecado tocar a tua pele morena? Seria pecado ocupar aquele vazio?
Fiquei ali, bem perto, ouvindo-te a respiração e os sonhos sobrevoando um lugar vazio.
Adormeci também.

quinta-feira, agosto 04, 2011

FRAGMENTOS DA MEMÓRIA

Olho mais uma vez pela janela do avião.

Lisboa vai desaparecendo por entre as nuvens enquanto ganhamos altitude.

Ao fazer a curva para corrigir a rota rumo a Madrid observo a cidade onde deixo tudo para trás.

Respiro fundo e diante dos meus olhos vai-se dissolvendo o pensamento.

Andava há vários meses a tentar destapar o peito e esta cidade destino é fantástica para isso.

Vou escrever mais um pequeno parágrafo da minha vida e, desta vez, a memória não vai precisar de o rasurar.

Chegaste-te à luz do candeeiro das palavras e leste-me devagarinho

como quem enrola a língua noutra língua

uma página noutra página.

E assim me foste lendo e à canção dos meus lábios.

Estacionarei o coração num lugar seguro e na rota das mãos a porta estará aberta.

Voltarei com beleza na bagagem.