Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

SERVIÇO DE URGÊNCIA (?) EM PORTUGAL



Desde há umas semanas que está na ordem do dia a reclamação e indignação pelo fecho de vários serviços de urgência hospitalar espalhados pelo país, nomeadamente em localidades da província.
Pareceu-me perfeitamente perceptível essa indignação por parte de milhares de pessoas que, para poderem ser auxiliadas numa urgência médica teriam, a partir desse momento, de percorrer centenas de kilómetros – só Deus sabe como e em que condições - até uma cidade ou localidade com um serviço de urgência.

De facto, é inacreditável que depois de uma vida inteira a descontar centenas de milhares de euros para uma dita Segurança Social, os portugueses nem sequer possam ter um serviço rápido e adequado de assistência médica urgente, já que sem ser “urgente” esses serviços também não funcionam!

Penso que Lisboa continua a ser capital de Portugal...ou será que já mudou e não dei conta disso? Provavelmente...

Vivo em Lisboa e testemunhei que na capital do nosso país, no Hospital de Santa Maria, o panorama e a assistência no serviço de urgência consegue ser ainda pior do que na província.
É verdade.
Na passada 2ªfeira fui convocada por um telefonema da escola do meu filho mais novo para me deslocar ao hospital. Fizera uma lesão na prática de um exercício físico e já estaria a caminho do Hospital de Santa Maria acompanhado por uma funcionária da escola. Eram cerca das 16h 30m.
Seguiram-se as complicações habituais no escritório com a entidade patronal que, apesar de ser normal e aceitável que uma mãe possa e deva ir ter com o seu filho ao serviço de urgências do hospital quando necessário, estrebucha e revê, mais uma vez, a lei laboral alertando-me para o facto do menor já ter 13 anos e, por isso, já não ter deireito a ser acompanhado por mim!
“Absurdo!”- pensará qualquer pessoa de bom senso, mãe ou pai, ou até mesmo quem não tenha filhos nem cadilhos.

Correndo o risco de ver o ordenado diminuído no próximo fim do mês e da abertura de um possível processo disciplinar fui ter ao hospital, não sem antes deixar o “serviço” todo alinhavado!

Ao portão do Hospital de Santa Maria nem sequer me perguntaram onde e por que razão entrava com o carro.
Depois de estar à espera mais de 3 ou 4 minutos com o carro a atravancar a entrada tentando falar com o “segurança” – a quem chamaríamos porteiro ou guarda há uns anos atrás – resolvi entrar.
Estacionei e corri para as urgências de adultos- com treze anos de idade os miúdos já não dão entrada no serviço de urgência de pediatria.
Depois de perguntar pelo rapaz em vários guichets - e inclusivé ao “segurança” brasileiro que guardava ferozmente a porta da entrada para o serviço de triagem das urgências - lá me indicaram a sala de espera onde deveria encontrar o meu filho.
A sala de espera é um quarto de cerca de 25 metros quadrados apinhado de pessoas, imensas cadeiras de rodas e macas devidamente preenchidas com doentes a gemerem e a gritarem, sem qualquer sítio para se estar sentado.
Para quem, como o meu filho - e outras tantas pessoas que estavam ali por um motivo médico urgente - está com dores por ter fracturado um braço ou um pulso - não é normal que tenha de permanecer de pé de três a cinco horas até ser atendido!

Além deste anterior “pormenor” as pessoas que ali se encontravam, algumas deitadas em macas, outras em cadeiras de rodas e ainda outras em pé, estavam de tal modo doentes e a necessitarem de assistência urgente que algumas delas caíam no chão desmaiadas
( espero que não tenha sido por morte !). Algumas tossiam insistentemente espalhando bactérias e vírus para quem ali permanecia, outras, não se contendo, vomitavam para o chão. O espaço entre as pessoas era de 5 a 10 centímetros dado o aglomerado de pessoas num tão pequeno espaço, o que ainda aumentava mais o incómodo.
Tempo previsível para o meu filho ser atendido: de quatro a cinco horas. Mais cinco horas à espera nestas condições?? Inadmissível! Dores, desmaios, infecções hospitalares, falta de devida triagem na entrada dos doentes, falta de instalações, falta ...de tudo o que seria de esperar de um serviço de urgência da nossa Segurança Social para a qual descontamos obrigatoriamente 11% do nosso ordenado mensalmente... no meu caso há mais de 33 anos!?!
É caso para dizer ao nosso Serviço de Saúde: “- Diga trinta e três!”, concluindo depois que o estado de degradação e inoperância do mesmo é terminal.

O meu miúdo estava branco e o suor escorria-lhe pela face. E estamos em Fevereiro, não em Agosto! As dores seriam certamente muitas e o que testemunhava ali também seria demasiado. Entretanto, sentara-se no chão agarrado ao braço.

Descolei-lhe a pulseira de cor verde que lhe tinham colocado no serviço de triagem de doentes ( as cores correspondem à ordem pela qual são examinados os doentes), rasguei o autocolante de “acompanhante” que me tinha sido entregue pela empregada da escola e resolvi ir a uma clínica de ortopedia privada onde paguei mais de 150 euros. Fi-lo porque tinha possibilidade de pagar essa quantia mesmo que, nos próximos vinte e dois dias tenha de ficar com uma situação complicada para pagar as contas de água, gás, electricidade, telefone, etc.
Esperarão as contas, pagarei as multas e suportarei os cortes e bloqueios dos contadores dos abastecimentos municipais, levarei lancheira para o escritório durante um ou dois meses...mas o miúdo foi radiografado, tratado, engessado e medicado antes das 21 horas de 2ªfeira.
Mas se, mesmo ficando com as contas mensais desorganizadas, não me tivesse sido possível ir a uma clínica particular, teria esperado cerca de quatro a cinco horas para o miúdo ser visto por um médico, mais uma ou duas para ser radiografado, mais uma ou duas para a radiografia ser vista novamente por um médico - que possivelmente já nem seria o mesmo que a mandou fazer – mais duas ou três para o engessarem e mais umas quantas para ser medicado e os papéis devidamente carimbados... Ou seja, por volta das cinco ou seis da manhã estaríamos os dois em casa.
Ele faltaria à escola, ficando sozinho em casa a dormir todo o dia até que as dores deixassem. Eu tomaria um duche, mudaria de roupa e regressaria ao meu emprego onde, com sorte, me comunicariam que mediante a apresentação do papel do hospital só se limitariam a descontar as horas em que me ausentei do local de trabalho sem aparente e legal justificação.

Quando será que os portugueses poderão ser donos e senhores dos 11% dos seus ordenados aplicando-os em verdadeiros seguros de saúde? Seguros de saúde que, de facto, auxiliem numa aflição ou numa doença?
A esperança ausente quanto à mudança do sistema e serviço de saúde português resulta nesta pergunta e na do tempo que ainda esperaremos pela resposta.
É injusto, desumano e inconstitucional!
Afinal de contas em que regime vivemos?

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

APRENDER A CONFIAR ( I )



Olhei pela janela da sala. O quintal continuava bonito, florido e a laranjeira continuava a dar laranjas. Afinal, as miúdas tinham continuado a cuidar da casa e do jardim.
A luz que entrava pela janela continuava especial, como lhe chamavas, com tonalidades arroxeadas ou alaranjadas ou até mesmo aniladas conforme a altura do ano, projectando um eterno bailado de sombras nas paredes e na mobília. Às vezes, parecia que tínhamos teatros de sombras dentro de casa com figuras fantasmagóricas ou perfeitamente reais e curriqueiras num desenrolar de movimentos sincopados.
Quantas horas passámos olhando-as e imaginando personagens das histórias que íamos inventando conforme a altura do ano nos ia deixando mais ou menos nostálgicos.

A porta ao fundo do corredor continuava fechada desde que tinhas partido.
As paredes, cobertas de obras tuas e de amigos nossos pareceram-me sempre enormes desde que partiste. Raríssimas foram as vezes em que tornei a entrar no teu atelier.
Era um salão grande que deitava para o quintal das traseiras.
O cheiro a tinta, a tela rasgada, a cola, a acrílico, a óleo de linhaça, a terbentina e a outros materiais similares tinha-se entranhado de tal modo nas paredes e na memória que ao abrir a porta era sempre muito fácil tornar a ver-te a trabalhar no meio de uma total desarrumação.
Como sempre, certamente te encontraria semi-nu, sem camisa, com as mãos, braços e tronco sujos de tinta, cola e completamente molhados de água e de suor.
Abri a porta de mansinho na esperança de não assustar a tua possível presença.
O copo de whiskey ainda lá continuava e a garrafa também, praticamente vazia.
Não lhes toquei. Aliás como nunca o fazia anteriormente.

Sempre a deambular com o copo na mão, de lá para cá e de cá para lá vinhas do atelier e chegavas com ele até à sala ou ao quarto onde, a maior parte dos dias, já dormia ou estava muito enroscada nos edredons da nossa cama.
Por vezes, quando queria levar o copo para lavar pedias-me para não o fazer.

“-Ele também ainda não sabe pintar...tal como eu. Ainda estamos a meio do caminho. Se o lavares ou se me trouxeres outro partirá novamente do zero”-costumavas dizer-me sorrindo com os olhos.

Achava-te graça, sempre com a eterna humildade de aprendiz por mais reconhecido e aceite que já fosses.
Nunca entendi se essa tua maneira de não ser vaidoso em relação à tua obra se devia ao facto dos artistas plásticos em Portugal nunca serem acarinhados, reconhecidos e incentivados ou se era por achares mesmo que ainda não tinhas alcançado o patamar que acharias necessário para te considerares um artista com obra de destaque.

“- Andei mais de quarenta anos a comer batata cozida para conseguir construir uma carreira de respeito e deparo-me diariamente com uns quantos artistóides que se passeiam pelos bares do Bairro Alto com representações esotéricas, sem qualquer tipo de linguagem e percurso coerente, expondo em colectivas nos hotéis e nos restaurantes da moda...francamente, este país está cada vez pior!”- muitas vezes barafustaste nas conversas com os teus colegas que nos visitavam ou iam a nossa casa jantar.

Invariavelmente as vossas conversas acabavam sempre no mesmo tema e lembro-me de uma frase tornada célebre entre vocês: “- Então, pá? Vendeste alguma coisa na exposição? Não? Pois, pois é, então não sei como é?! Claro que sei! Eu também não. Em Portugal é mesmo assim. Deixa lá, estamos a trabalhar para a Fundação! Ah,ah,ah...!”.

“- Fundação? Mas afinal que fundação?”- perguntei uma das várias vezes que vos ouvi falar disso.

“_ A que vais fazer quando eu morrer!!! Tu e o resto das viúvas de todos nós!Ah, ah, ah!”- respondeste com aquelas gargalhadas cheias como só tu sabias soltar.

“- Que disparate Miguel...! Acabem lá com esses disparates! Mário devias pôr juízo na cabeça dos teus amigos...já nada te digo a ti António porque consegues ser ainda mais corrosivo e escatológico que o Miguel!- disse-lhes tentando sacudir idéias desagradavéis.

A tua prensa de gravura também ali continuava, enorme, silenciosa e queda. Inúmeras chapas ainda espalhadas pelas mesas, algumas encostadas ao lado da mesa de tintagem, testemunhavam longos anos de trabalho. Várias exposições, prémios, representações no estrangeiro e peças espalhadas em colecções portuguesas.

Depois de alguns anos de impasse e indecisão resolvemos a nossa definitiva mudança para Paris essencialmente por causa da tua carreira.
Claro que Paris também sempre nos apaixonara por ser a cidade onde tudo acontecia. Respirava-se cultura em Paris. As pessoas eram mais civilizadas e cultas que em Lisboa, tudo parecia bem mais ordenado, arranjado, bonito...humano.
Qualquer iniciativa parecia possível em Paris, desde que não fosse desprovida de sentido. A mentalidade bem diferente da portuguesa. Pessoas muito mais abertas, sensíveis e viradas para a vida e para o mundo.
Quantos não foram os jantares com colegas e amigos que inevitavelmente acabaram no teu atelier, prolongando-se pela madrugada. Muitas vezes acabava por me ir deitar antes de todos saírem. Eram todos muito mais teimosos que a noite e espantavam o sono ao ponto de nem sequer demonstrarem qualquer sinal de cansaço.
Tu sempre foste ave nocturna, tal como a tua mãe me contou. A noite exercia em ti um fascínio medonho, capaz de fazer ciúmes à mulher mais desprendida.
Tu e a noite tinham um “affaire” infinito no tempo e no espaço, só desfeito pela chegada do sol.

Entrar no teu atelier era revisitar anos de uma vida em conjunto da qual ainda tecia lágrimas de saudade. Por isso fechei novamente a porta tão devagar como a abri.