Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, junho 18, 2014

CONCAVO



Pedes tempo,
pedes o silêncio para aquietar as mágoas
pedes o tempo que o teu tempo tem de ter
para esquecer as noites quentes do verão passado.
E eu que estava tão perto de ti,
como transformo o tempo em espaço
para esquecer o quente de agora?

quinta-feira, junho 05, 2014


CORAÇÃO VOLUNTÁRIO

boneca de Paula Estorninho



Subi apressada com o livro já aberto na página onde tínhamos ficado. 
Sabia-te sempre ansioso.


Adélia estava à porta, como de costume, mas sem o seu ar cândido e bonacheirão. Carregava um cansaço cinzento.


“- Não se apresse, menina…hoje não é preciso correr, ele foi para a clínica novamente... desta não vai voltar mais.” – assustei-me porque os seus olhos não fitavam os meus.


Dei-lhe um beijo e hesitei… não queria entrar nas notícias sobre Afonso.


Na passada quarta-feira tinha a respiração mais ofegante mas estava bem humorado, contente por me ver chegar. 

Dói-me entender a razão do espaço vazio no cadeirão vermelho de design irrepreensível. Tudo à sua volta sempre tão aparentemente adequado e equilibrado.


Tento decifrar agora as emoções que se colaram ao peito e não consigo importar-me com mais nada que não seja verdadeiramente humano, amoroso e digno desta vida.


Decifrar sentimentos não é tarefa fácil, nesta tarde sem horas, vivendo a antecipação de um vazio com nome e memórias. Vivo este aceitar como um desencontro de emoções.


 “- Olhe, menina aqui tem estes escrevinhanços dele. Consegue decifrar estes gatafunhos?”


“- Dê cá Adélia…dê-mos cá… Vou levá-los e volto na próxima semana ou…telefono-lhe amanhã ou depois para saber notícias dele. Se for vê-lo diga-lhe que o livro ainda vai a meio e que o final é inesperado, está bem?”- desci a escada como se fugisse de um animal assanhado.


O vento continua a fustigar-me os olhos, a revoltar o cabelo e a vontade de aceitar.

Volto a pé para casa e sento-me no quiosque do jardim. 
Nas mãos trago as folhas de papel amachucadas escritas a esferográfica preta, a lápis de carvão e com desenhos pintados a algo que parece aguarela ou tinta mesclada de água.



" Entras pela porta com o sorriso do costume como se a vida fosse bela, fácil ou justa. Obrigada por me fazeres almejar que talvez possa estar errado.

Não percebo porque me amas ao ponto de ficares horas comigo da única forma que sabes  acalentando a esperança de que todos podemos ser felizes. Eu, a Adélia e mesmo tu. Eu sei que não és, não podes ser feliz assim como parece, não é possível a tua paz e serenidade, tanta falta de identidade egocêntrica. Não existe e tento concluir-te confessando que não oiço as histórias que lês. Ao teu som entro numa viagem que me sossega, me apazigua a alma que me constroem momentos de energia tão boa de ter. E desejo viver nesse permanente bem estar, nessa boa querença. Como se fosse possível.

Não pode ser verdade o amor e a felicidade que trazes sempre que entras pelo quarto e me olhas nos olhos sem desnotares a anormalidade do que sou. A transfiguração do ser.

O que tens tu na tua vida que te suporta, que te serena e te traz assim? Fiz-te já tantas vezes perguntas várias mas não me contas tudo, pois não? Não acredito em ti mulher feliz…não acredito em ti mulher de traços adocicados. Vejo a tristeza lá atrás dos teus cabelos desalinhados e dos pés que teimas em descalçar a cada passo. Vá lá, ensina-me a transformar as tristezas iguais às tuas em serenidade e alegria como à que teimas em ter só para ti. Dá-me mais do que as horas de palavras e melodias, sorrisos e encantamento que me trazes à hora do lanche. Por favor faz-me ser também feliz.

Estou à espera que chegue a quarta feira que vem. Quero saber se podes vir mais vezes, deixa a vida que não te ama e vem mais vezes vivê-la aqui. Peço à Adélia para fazer o bolo de amêndoa e mel. E dou-te algumas das imagens e fotografias antigas que estão na gaveta do meio.
Renasço de cada vez que te oiço e que te sinto cá por casa. Renasço mesmo sabendo que estou mais perto do morrer do que do nascer. Afogo-me no silêncio neuroticamente e deixo que este dia passe. És uma das coisas que me faz esperar e fazer concessões à indiferença da realidade. É esse o teu nome."



Sinto frio nas costas, o vento continua a chatear-me.

Tomo consciência de que viver a verdadeira compaixão não significa ser sempre doce e agradável. Por vezes fui áspera e fria para ver esse renascimento a que te referes. 
Provavelmente ser verdadeiramente honesta não deverá significar contar todos os pensamentos e sentimentos que vão surgindo com o passar do tempo. Reconheço a verdade sendo alterada tal e qual como a nossa passagem nesta vida.


Sou leitora voluntária. Faço companhia a outras pessoas lendo e contando histórias, falando de notícias, explorando assuntos. Invisto horas das minhas porque sinto que tenho e posso dar algum contributo para fazer nascer felicidade....mas em dias como o de hoje hesito em continuar. ..por egoísmo e necessidade de um abraço.