Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, novembro 20, 2008

OUTONO


Na cidade perdemos a noção da biodiversidade, fantástica característica do mundo que me apaixona.

Quando fugimos deste amontoado de betão e stress que afronta quem vive nas cidades e passamos para lá da barreira do peso urbano retomamos o contacto e a capacidade de apreender a variadade das cores, das formas, das distâncias, dos cheiros, das texturas, o retorno ao que de mais humano e natural existe em nós.

Todas as estações do ano têm a sua beleza, os seus cheiros, as suas intuições e sensações embora sejam cada vez menos marcantes as passagens e alterações climatéricas entre elas, como até há uma ou duas dezenas de anos atrás.

O Outono trouxe, mais uma vez, os tons quentes avermelhados, amarelados e ruivos das folhas das árvores e dos campos, o manto escorregadio das folhas debaixo dos pés, o sol esfriado tentando acalmar o frio que nos fustiga a pele, o prazer da lareira acesa, do calor dos cobertores e dos chás e tisanas quentes ao longo dos dias.

A fuga da cidade enche-nos de cores que aquecem a alma e nos revisitam as memórias por dentro. Os nossos sentidos alertam-se e renovam-se interiormente à procura de mais descobertas.


Tal como acontece entre as pessoas pertencemos mais à Natureza quando a deixamos entrar.


quinta-feira, novembro 13, 2008

HISTÓRIAS DO JOÃO

14 anos


“- Mãe, estou confuso...sabes o que queria mesmo, mesmo ?...Era “descer” um ou dois pontos na idade!” – exclamou o meu filho quando começámos a conversa acerca do Natal.

O João costuma sentar-se numa das cadeiras da cozinha durante as minhas deambulações entre o frigorífico o fogão e o lava-loiças preparando o nosso jantar. É um ritual diário que já faz parte do nosso quotidiano.
Mas esta história vinha já desde a hora em que cheguei a casa, cerca das 20 horas: em cima da secretária dele estavam uns desenhos com coroas reais impressos em papel branco. Coroas usadas pelos reis, redondinhas e bonitas em tons de azul entrelaçando-se e identificando o seu apelido.
Para o João o apelido é muito importante, não que seja de famílias com brasões ou realezas, ou até endinheiradas, mas é através dele que se identifica com o pai e se sente a pertencer ao homem que mais ama no mundo.

“-Que engraçadas que são estas coroas, João! Para que são? Para algum trabalho?”- perguntei-lhe.

“- Gosta? São bué, não são? São para personalizar o portátil. Já combinei com o pai e ele pode mandar pintar nas costas do portátil o que eu quiser. Ele diz que faz...não sei bem se faz ou não, mas disse. Vamos ver!”- disse-me entusiasmado.

“- Mas que portátil?”- perguntei-lhe fazendo-me de parva, pois o pai já me tinha falado em oferecermos “a meias” um portátil ao miúdo no Natal.
“- Para que queres tu um portátil?”- insisti.

A partir daquele instante instalou-se o caos e a desordem naquela cabecinha. Os olhos deixaram de brilhar e ficou pasmado a olhar para mim.

“- Então, Jonas...tens o Compaq velho que a mãe te deu. Como está com problemas estava a pensar mandá-lo para arranjar.”- disse-lhe pressionando uma reacção.

Estava à espera que a resposta fosse a normal para um adolescente da idade dele: “que chatice ficar outra vez com o PC velho e todo “fanado”; que já tinha combinado com o pai e que mais isto e que mais aquilo.”


Mas não, mais uma vez o miúdo surpreendeu-me e ficou com a confusão estampada na cara, calado e pensantivo.

Fui para a cozinha preparar o jantar. Invariavelmente lá estava ele sentado na cadeira da cozinha passados minutos.

“- Tem razão, Mãe, eu não sei bem se devo ou não querer o portátil!”- começou“ tenho medo de pedir isso e depois como o pai disse que tem de ser só até 400 euros a máquina ser fraca e estragar-se logo...e vocês gastaram dinheiro para nada...e se esperarem até para o ano e comprarem um melhor, com mais memória e com o processador de confiança para não se estragar ?”- perguntou-me tentando ordenar as próprias ideias.

“- Não sei, João, mas é uma ideia. E o que querias como prenda de Natal?”- perguntei-lhe.

“- Eu sei lá, mãe...eu queria mesmo era descer um ou dois pontos na idade...e ter aquela muralha enorme de brinquedos à minha frente. Lembra-se? Eu lembro-me tão bem! Rasgava papel e mais papel e tinha uma muralha enorme de prendas para abrir. Era tão bom...e não tinha que ter estas decisões de hoje. Não tinha de pensar entre o que eu quero e o que é mais ou menos correcto. Antes eu queria e pronto, não tinha de estar a pensar se vocês iam gastar muito dinheiro ou não, se era preciso aquilo ou não, queria e pronto! Tinha aqueles folhetos do Toys R’us e ia fazendo cruzinhas até ao dia de Natal!- continuou a pensar alto tentando desabafar os seus próprios desalentos.

“- Isso chama-se crescer, será?”- disse-lhe metendo a minha colherada naquela caldeirada de emoções.

“- Se é não gosto nada! Estou confuso, mãe, desconfortável e baralhado. Sinto a falta de alguma coisa aqui dentro. Sinto que me falta alguma coisa cá dentro e não sei o quê.... falta-me aquela muralha de brinquedos para abrir, com toda a gente a dar-me prendas bonitas e aquela forma de me sentir quando rasgava os papeis...agora já sei que as prendas são as meias das tias e os boxeurs dos primos, os albuns de fotografias da Tia Alice; a camisola do Benfica porque combinei com o tio Carlos e, se quero ter um jogo para a Playstation vou ter de regatear muito bem com o tio Telmo... Ah, livros também já sei que me vão dar porque tenho de ler muito, não é ?”- continuava a falar enquanto o arroz cozia e os bifes iam fritando.
Fui rindo à medida que ele falava para aligeirar o incómodo que sabia estar a importuná-lo e fazê-lo sentir-se desconfortável, revoltado e confuso.
Também se ria, reacção própria do seu bom feitio, ao mesmoo tempo que agarrava numa colher de pau e ia batendo com ela na mesa, cadeiras, pernas, etc, acompanhando o seu discurso como se regesse uma orquestra e tivesse de manter a coordenação dos vários instrumentos.

“- Não sei, mãe, não sei o que dizer, o que sentir e o que pedir. Se peço um telemóvel como o anterior já sei que é para mo roubarem. Mês sim, mês não sou assaltado. Iphones e essas coisas também é para roubarem, não vale a pena. O portátil era mais para eu ter uma coisa minha desde o início onde eu teria as minhas coisas, as minhas fotos, os meus filmes, mas desde o zero. Mas não sei se valerá a pena. “- continuou – “ eu sei lá, nem sei se o pai consegue fazer aquilo que prometeu, a pintura personalizada.”

“- O jantar está quase pronto, pões a mesa?”- pedi-lhe sorrindo ao perceber que o meu filho estava a pensar acerca das coisas que se passam à sua volta, acerca do que quer e do que é ou não possível querer, sobre a oportunidade das coisas e sobre o esforço que os pais fazem por ele.

À hora de se deitar deu-me um beijo e perguntou: “ – Mãe, vem falar comigo um bocadinho ?”
“-Já lá vou. Não te esqueças de lavar os dentes”-disse-lhe fazendo o meu papel de mãe.

Entrei no quarto do João, sentei-me na cama dele e passei-lhe a mão pelos cabelos. Fiz-lhe festas na cabeça. Começou a falar cada vez mais pausadamente até que quando estava quase a adormecer me disse o quanto gostava de voltar a ter menos idade.

Crescer dói e é desconfortável. Lembram-se?

sábado, novembro 08, 2008

DONA...?




“- Bom dia Dona...”.
Automaticamente devolvi os votos de bom dia antes mesmo de me aperceber de quem vinham. Tinha acabado de sair de casa e de dar a volta à chave. Ainda no patamar da escada fiquei a olhar para o cimo dos degraus de onde tinham soado as palavras.
O prédio anda em obras há mais de um mês, mas como saio cedo de casa e regresso perto do anoitecer nunca me tinha cruzado com ninguém. Estou a mentir, sem querer...a minha memória já não é o que era!
Recordo que um dia, ao descer a escada, deparei-me com um escadote no patamar do segundo andar. Um rapaz novo de pele escura como breu estava escarranchado nele com uma trincha na mão. A tinta branca ia pingando para o chão, pingo a pingo, enquanto olhava para mim boquiaberto. Não se mexia apesar de ser óbvio que eu não conseguiria passar caso não se movesse dali.
Expliquei-lhe que queria descer as escadas. Lentamente e sem nada dizer foi descendo os degraus do escadote, arredando-o para um dos lados, sujando de tinta o corrimão da escada.
Depois desse dia nunca mais vi ninguém a pintar ou a restaurar a escada do prédio, embora o cheiro e o lixo demonstrassem que ainda por ali andavam.

“- A Dona desculpe, queria pedir se tinha roupa velha. Vem aí o frio e não tenho roupa quente. Se a Dona tiver eu agradeço.”

Fiquei a olhar para ele tocada pela simplicidade do pedido e pelo seu pedido frontal mas humilde. Um pouco à moda do colonialismo, como se a senhora branca fosse patroa e benfeitora.
Aquele homem já de idade, vindo de um país onde o calor e o sol ajudam quem não tem roupa para se cobrir, com a pele escura e lábios negros e grossos, apontava-me os seus olhos grandes e tristonhos, como se não esperassem grande coisa da vida.

“- Sim... acho que o meu filho tem roupa que já não lhe serve. Vou falar com ele e amanhã ou depois deixarei aqui na escada.... Aqui à minha porta, está bem? Saio cedo, não devo encontrá-lo.” - respondi.

“- Muito obrigado Dona...sim, pode deixar aí ou eu venho mais cedo e vejo-a. Vou estar aqui até terça-feira. Só vou embora depois.”

Desci a escada sentindo a doçura daquele homem. O seu pedido de ajuda e a maneira gentil como o fez, ao contrário de tantas outras pessoas por quem somos agredidos diariamente, aqueceu-me num dia mais frio do que o costume.

O que teria sido a vida daquele homem? Como teria chegado a Portugal? Porque veio para cá? O que teria já passado? A forma como falou, os seus modos, a sua educação fizeram a diferença.

São seis da tarde e ainda me recordo dele.

terça-feira, novembro 04, 2008

PARTIDA

Choro
por cima de mim,
de dentro de mim,
enrugando-me num corpo que já não conheço.
Que me é distante e estranho.
Que me trai em cada dia, a cada alvorecer
e no entardecer das tardes sem o gozo de todos os dias.
Réstia de mim,
retrato de outro eu que não este,
estou agora a ser.
E assim serei até que o choro deixe de me atormentar
lavando e levando o sofrimento que me foi dado
apagando sem desvios
os sulcos de dor lavrados no rosto,
as mãos caídas sem amparo arrastadas dia após dia
procurando consolo,
molhando o que de mim ainda existe para dar,
chorando sem prepósito nem propósito,
sem espera,
lançada que estou nesta viagem contada no tempo.

Choro
tentando lavar o que de nojo transporto na alma
e a dor que me come a carne que resta viva.
O choro que choro não é brando
nem leve, nem sequer bonito é de se ver

Vai pedindo um amanhã diferente
com menos mágoa, menos dor, menos tudo isto de agora.