Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

domingo, janeiro 29, 2006

BEIJO SEM BOCA,
CÉU SEM FUNDO




Mataste o reparável.
O medo e o desejo
de prosseguir acreditando.
Mataste a magia
e o não morrer de cansaço.

Mataste a sede de saber
e de iludir num qualquer amanhã.
Mataste o encanto dos amores.
Há erros irreparáveis porque matam
o encanto dos amores
entre os amantes.

Nasceu
o desencanto, a melancolia
o não faz mal.
Falta a saudade e o contentamento.
O instante passou.

Mataste o sorriso de outrora.
Que deu lugar ao de agora
que não é mais o sorriso.

Sou público passivo
irremediavelmente só,
fechada neste mundo que não escolhi,
que não me foi prometido
mas que herdei por ter confiado.

Mataste o remediável e o reparável
deixando rasto de desencanto e engano.

Amar não é isso.
Amar não sabe a
solidão, a perda ou a engano.

Aqui jaz quem foi feita descrença
esquecendo-se mais e mais de si mesma
e de acreditar que existe algo mais para além do céu.

Revelaste-te beijo sem boca,
céu sem fundo.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

HOMENAGEM


















Querida Mãe
Querida Avó

A maior e melhor homenagem que te podemos fazer é continuarmos aquilo que tu ( e o pai) nos transmitiram :
aquilo que somos, com os defeitos e as qualidades e a consciência para discernir as diferenças.

A capacidade para amar, errar, emendar a mão,
perdoar e não julgar.

A tua maior dádiva (e lição) em relação a nós
foi o teu amor incondicional.

Mesmo quando em desacordo, o teu amor e apoio era incondicional.
O amor.
E há também a grandeza de nos podermos lembrar de ti.
O que rimos, o que chorámos, o que concordámos, o que discordámos mas, essencialmente o que amámos.

Sobre os nossos erros pedimos que entendas, mais uma vez, afinal como sempre!

Dos nossos actos de amor sabemos que não esquecerás e não esqueceremos.
Acredita que te amamos agora e sempre, assim como continuámos sempre a amar o Pai.

Lembras-te dos teus últimos sonhos?

Lembras-te daquele que sonhavas sempre e sempre,
e mais uma vez?
O sonho da escada que subias em forma de pirâmide?
Onde havia uma mão que te tocava na cabeça e não te deixava subir mais,
apesar de te sentires tão bem ?

Conta-nos mais uma vez esse teu sonho, Mãe,
Diz-nos que pode ser realidade!
Como nós fomos a tua.

Até já, Mãe
Até já Avó

(25 de Junho de 2003)

domingo, janeiro 22, 2006

CON(S)CIÊNCIA




Consciente de estar deitada
em cima da cama
a teu lado
fecho novamente os olhos,
acabados de abrir faz pouco tempo,
recordando a sensação doce
de te ter tido mais comigo
do que com outro alguém.

Deitada na cama – tua? nossa?
de olhos fechados
sinto ainda as ondas do teu mar
dentro do que não sei se sou eu
e peço para essa sensação não se desvanecer.

Deitada na cama
já sem olhos ou ouvidos
nua de roupa e de preconceitos,
lambo os meus lábios
molhando-os com saliva
como te molhei horas antes
até morderes os teus com os dentes
que me morderam longamente a nuca
e me rasgaram as parcas roupas que trazia no corpo

ao chegar
ao chegar-me
ao chegares-te a mim
ao amares-me através da saliva que deixei
no teu pelo crespo e cheiroso
com cheiro a amoras escuras e húmidas.

Sensações e desprendimento feito
vertigem com cores,
que não tens na tua paleta de artista,
cores parecidas com o vazio do teu olhar
quando sentes o prazer do teu sexo
duro e quente abraçado pelos meus dedos,
amado pela minha boca.

Vertigem como se nos tivéssemos perdido no mar
que ontem contemplámos da janela do teu esconderijo
feito casa
onde as promessas foram poucas e o amor demais
onde procurei refúgio e te encontrei
não guarita mas soldado.

As tuas mãos nas minhas ancas
foram as âncoras da minha embarcação
durante longos meses de pousio
sem largar, sem partir
sem sequer pensar onde seria o mais além,
o depois e o porquê?

Tu e eu e o que só nosso pode ser
no mundo que pintámos
com cores que descobrimos.
Que lavamos com as lágrimas que deixamos chorar
que guarnecemos com as músicas ouvidas
nas madrugadas dos dias curtos.

Que amamentamos com os bicos dos seios
da solidão vivida a dois
sedenta do fluxo quente de um amor maduro
e duro
e quente
e amigo
de amantes empoleirados
nos ramos da árvore dos sexos sem paredes,
sem fantasmas translúcidos a meterem medos ou sustos.

Só nós, as cores, os sons e o bater do nosso coração
a chamar, a chamar
os nossos nomes e os nossos sentidos.

A minha língua no teu ventre
como pano carmin afagando a tua barriga,
chegando ao teu sexo que se move
e se empoleira nos meus lábios
chamando,
pedindo a minha boca quente e macia
para nela descansar desfazendo-se num leite
esvaziado de vida
outrora com dono e descendência.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

JÁ NINGUÉM SE APAIXONA ?
acerca de um texto do Miguel Esteves Cardoso
Já ninguém se apaixona com verdade, já ninguém tem capacidade para viver um amor impossível. Nem se entende o que isso é. Já ninguém aceita amar sem uma razão. A paixão, que devia ser desmedida, tem já conta, peso e medida. É na medida do possível.
Os namorados de hoje são cobardes e comodistas. Incapazes de um rasgo de alma, de um golpe de asa, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, qualquer coisa que mostre um verdadeiro amor. Tudo isto já não é possível porque hoje já ninguém se apaixona. São utilizadores de telefones, colegas de cantina e tomadores de bicas, comedores de saladas rápidas, mas não apaixonados. Será que já ninguém tem capacidade real para se apaixonar?

Já ninguém aceita a paixão, a saudade sem fim, a tristeza e o desequilíbrio. Já ninguém paga o preço do medo, o custo do amor e da mágoa que nos come o coração e que nos adoça o peito ao mesmo tempo? O amor é diferente, o amor não é o mesmo que a vida. São coisas diferentes.

O amor não é para ser uma ajuda para sobreviver a esta vida que nos cansa. O amor é a razão de sobreviver a esta vida. O amor não é o intervalo nesta íngreme e esburacada estrada da vida. O amor é, por si só.
Que saudades do romance, da maluquice, dos choros, dos abraços e das flores. O amor foi trespassado pela "vidinha". Furado de um lado ao outro com uma seta ao contrário.
Igualmente trespassado tal como as drogarias e as mercearias para darem lugar às "grandes superfícies".
O amor é uma coisa, a vida é outra. Mas a vida, às vezes, mata o amor. O amor verdadeiro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor é uma condição.
Não se consegue explicar. Não se consegue perceber e também não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a viver, a desatar, a transbordar, a ser mais e mais.

O amor é uma verdade. O amor verdadeiro leva à ilusão, à invenção, à criatividade. Inventa-se quando se ama e sonha-se o que se quer. Mas o amor é uma coisa diferente da vida. São coisas diferentes.

Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha : é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É.

É sinal de amor não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho à espera que a tristeza não nos leve antes da chegada de quem se ama. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.
Só assim vale a pena.

Que me perdoem os amantes de agora, mas nem amantes sabem ser.

Pour toi mon amour



Je suis allé au marché aux oiseaux

Et j'ai acheté des oiseaux

Pour toi mon amour

Je suis allé au marché aux fleurs

Et j'ai acheté des fleurs

Pour toi mon amour

Je suis allé au marché à la ferraille

Et j'ai acheté des chaînes

De lourtes chaînes

Pour toi mon amour

Et puis je suis allé au marché aux esclaves

Et je t'ai cherchée

Mais je ne t'ai pas trouvé

mon amour.

PAROLES, EDITIONS GALLIMARD, 1972, P. 48

domingo, janeiro 15, 2006

Geometria


As estações sucedem-se
- nessa banalidade se vão desfiando os cordéis
com que as Parcas nos sustentam;
mas regressa o sol num dia de Inverno,
a chuva em Agosto, as flores e as cerejas,
o vermelho e o castanho das folhas de Outono.
Pegadas na memória, por vezes como dor,
outras como consolo. A teia das imagens
que nos amparam, os fragmentos de conversas
em que nos ouvimos e escutamos os outros.
Prismas que refractam a geometria do tempo.

sábado, janeiro 14, 2006

Sem mais porquês


Esta noite esperei por ti. Toda a noite e todos os dias santos como santas serão as minhas mãos sem ti. Esperei toda a noite sem ti, pelas mãos que me adormecem os sonhos e me beijam o olhar do que chamas amanhã. Esperei nesta escuridão de sentidos confusos onde o desejo e a paixão se cruzam e entreolham os desejos de outros presentes. Presentes do corpo sem alma presentes e ausentes duma inquisição sem escrúpulos. Aparências, necessidades, confusão do que é, do que será e do que não poderá mais vir a ser. Desta vez, sem desculpas e sem mais porquê esperarei por ti, no sítio costumeiro, com a mesma alma. Vestirei o meu casaco vermelho pronto para o desapertares com os requintes de sempre.
Esperarei por ti e viverei mais uma noite de paixão,
cumplicidade e desvario mesmo que não venhas,
meu amor.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

O CÉU BEIJOU A TERRA



O Céu beijou a Terra e deixou-lhe impressa no rosto a sua efígie deslumbrante.
O Céu é a imagem da Terra, mas indefinida e transparente.
Noivam, todos os anos, o Céu e a Terra.
Teixeira de Pascoaes - in Prosa e Poesia

segunda-feira, janeiro 09, 2006



NEM POR FARSA, NEM POR PRAZER


Sempre soube, pelo cantar da cotovia e pelo soar dos seus passos na escada que ele não tornaria a vir. Nem sequer de madrugada. Nem naquela, nem nesta nem nas próximas.
Sempre soube que mentia sem prazer e sem querer.

Sabia ler nos espelhos dos quartos onde nos amávamos que a nossa era uma história sem História.

Sempre o soube, sentindo o coração cantar-me numa balada triste, contando que o meu sentimento correria borda fora como o correr de um rio quando a sua sede secasse.

Sempre soube que mais não era que o sal da sua boca, dissolvendo-me mais e mais cada vez que me comia os lábios avermelhados.

As cotovias, as fontes, os rios, os corações, os olhos, as mãos e as gentes sempre souberam o quanto valia aquele amor e o quanto era frágil de tanto ser.

Sabia já que o sofrimento faria par comigo nas frias madrugadas de adeus.
E que a solidão seria a substituta companheira que me aqueceria as pernas quando na cama deitada acariciaria as coxas fingindo-me, imitando-o.
Inventando o insuportavelmente inexistente.

Sabia o que era sem mim e bem o que fui sem ele.
Só ainda não sei o que é para mim ele não saber o que eu sou agora.

Eu soube, pelo cantar da cotovia que ele não viria.
Soube pelo que li nos espelhos dos quartos que não voltaria para os braços redondos de quem ama.
O coração contou-me triste e só como só ele pode ser como seriam as frias e longas madrugadas.

Sempre soube que o meu amor, na sua boca, mais não era que um sal dissolvendo-se mais e mais a cada dentada de vida vivida nas horas roubadas aos dias.
E aos meus lábios vermelhos.

E os olhos? Como os olhos me souberam dizer que não esperasse.
Não quis vê-los.
Fechei-os e abri os braços onde cantavam as cotovias, gelavam as madrugadas, amadureciam os lábios acariciavam-se as despedidas e aprendiam-se a fazer pares.

Já sabia que o sofrimento faria par comigo nas frias madrugadas do adeus. E que a solidão seria a minha companheira tentando inventar o insuportavelmente inexistente.

Do que estava eu à espera, então?