Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, junho 30, 2006

CAMINHO DO CORAÇÃO

Serei água
enquanto fores sedenta
Serei luz
enquanto os teus olhos me reconhecerem
Serei pele

enquanto as noites forem curtas
e tornarei a reconhecer-me como carne enquanto engravidares de todos os filhos com que nasceste
Serei branco
enquanto me sonhares
Serei bruma

enquanto dormires com os olhos abertos para que a mentira não os fira com gume afiado
Serei muralha
contra as maldades que te desfeiam
Serei o que pensaste querer enquanto o quiseres
Serei teu
enquanto o coração o mandar e a alma aguentar as tuas asas

Seremos tudo
quando o nada chegar de mansinho fazendo pssst
Seremos delicados e silenciosos
ao invés do amor das noites quentes nos trópicos
Serei tu dentro de mim
enquanto prazer houver para provar e orgulho para sentir
Serei rumo
enquanto te escrever descrevendo-me

quinta-feira, junho 29, 2006


UTOPIA PREVENTIVA



Passou-me o braço pelos ombros num abraço meigo e forte.
Tinha olhos tão claros que mais pareciam espelhos.

Disse-me: “Minha querida, não queiras ser como eu, não me tomes por modelo...talvez...exemplo, referência...Mas é melhor quereres ser como tu, seguir exactamente o que tu és, o teu “projecto”, a tua “possibilidade".

Fiz uma careta de espanto.

“Poderei ser uma luzinha ao fundo do teu tunel nas noites más ou nas bermas das tuas estradas, assim como outras pessoas que irás conhecendo, mas serás melhor pessoa se fores tu, sem tentares seguir o meu ou outro modelo, entendes?”- perguntou-me em tom de resposta.

Continuava a sua tranquilidade que tanto me confundia ao mesmo tempo que me trazia aquela paz que tanto necessitava como reconhecimento da sua existência: “Acredito que para cada pessoa existe um sonho que nasce no mesmo dia e à mesma hora que elas. E esse sonho também é feito por Deus. É só e simplesmente um sonho, um projecto. É uma possibilidade. Só temos de tentar viver essa possibilidade. O melhor e da melhor maneira que soubermos. Isso é a vida. Complicamos, sei que não é fácil, mas é simplesmente isto. E já é um grande trabalho!"- disse ao mesmo tempo que se deixava sorrir. E o sorriso levou-a para bem longe.

Helena estremeceu e senti o frio percorrê-la. Perguntei-lhe se estava bem. Os seus olhos tinham-se cerrado para voltarem a abrir-se num azul ainda mais calmo.
“Estou bem, sim. Pensava no meu sonho…na possibilidade que tentei viver nem sempre conscientemente. Só a partir de certa etapa comecei a perceber que viver seria tentar essa possibilidade que ligava irremediavelmente o sonho à minha vida.”

- E qual foi? Como foi?”- perguntei-lhe como se fosse criança e quisesse saber o fim da história, aconchegando-me nas suas mãos de mel.

“- Mesmo que não entendas agora o que te vou contar não inventarei príncipes que nunca chegam, nem castelos de fadas só sonhadas, nem muralhas intransponíveis. Falar-te-ei de angústia. Angústias que fazem, essas sim, a diferença.
Quantos sonhos, quantas lutas, quantos caminhos percorridos a andar ou a correr!
Sonhos. Quem já não tem sonhos ou nunca os teve não se angustia ou nunca sentiu esse ardor a comer-lhe as entranhas. Sabes, sempre vivi com angústia, com um desassossego malvado que nunca me deu tréguas. E como eu outros estão deste mesmo lado”- acrescentou.

“Vivemos com angústias exactamente porque sonhamos, porque sentimos que há tanto para mudar, que há que mudar, que há tanto de errado em tanta coisa e sonhamos. Sonhamos sempre. Sonhamos que, de alguma forma, o que não está bem mudará um dia. Essa é a diferença. Entre gente pequenina, que pensa e sente pequenino e pessoas onde a angústia sulcou as estradas da compreensão e do sonho.“

“- ... Utopia?”- perguntei com medo de não ter entendido.

“-Exactamente Mariana! Vivemos com angústia desde que nos lembramos que somos gente. Pela simples razão que continuamos a necessitar de pensar e projectar utopias, mesmo sabendo-as utopias. E este aparente pequeno nada paradoxal é que nos torna diferentes: uns de um lado e os outros lá ao fundo, bem longe por nunca terem realmente sonhado.
É esta a diferença entre as pessoas. Não são melhores umas e piores outras: somente diferentes, tremendamente diferentes apesar de mais felizes e menos angustiadas.”

Tornou a elevar os olhos até encontrar os meus : “Nunca deixes fugir a angústia Mariana!”

quinta-feira, junho 22, 2006

CRÓNICA INTEMPORAL - I






A MEMÓRIA DOS CHEIROS

Madeira, carvão e dor de ouvidos



Uma das mais vivas memórias que guardo da infância e da adolescência é a dos cheiros. Consigo facilmente vê-los hoje como os sentia então. Claro que sim, os cheiros têm cor! Um dos mais remotos é o dos brinquedos. Da madeira com que eram feitas umas pequenas peças com as quais eu e a minha irmã brincávamos no quarto do meio; o dos brinquedos como
depois se passou a chamar. Peças de madeira quadradas e rectangulares com papeís desenhados e coloridos colados na perfeição, identificando as que seriam portas ou janelas das casinhas e palácios que íamos construindo ao longo das tardes. Esse cheiro a madeira leva-me numa viagem para dentro dos meus olhos: numa das prateleiras do quarto havia sempre um aquário redondo. Com um peixe cor de laranja lá dentro que nadava incessantemente desenhando inúmeras circunferências.
Hoje entendo que o aquário era muito redondo e muito pequeno para aquele peixe que provavelmente morreria de problemas de coluna. Ou empanturrado de tanta comida apesar dos avisos da avó.
O do comboio persiste igualmente até hoje com um verde bem escuro.
As carruagens eram verdes e havia a primeira, a segunda e a terceira classe. A numeração era romana. Na primeira tinha um pauzinho. E na segunda e terceira os pauzinhos dourados iam aumentando. As carruagens eram iguais às do comboio eléctrico que o Arturinho recebera naquele Natal em que estive doente. Abauladas e com janelas de cair. Aquele cheiro fazia-me imaginar grandes viagens para sítios maravilhosos.
Mesmo que, afinal, o destino fosse sempre o mesmo: Ferreira do Zêzere. Férias com a tia Emília na pensão do Senhor Xico.
Durante anos chorava na primeira noite pela minha mãe, pelos meus irmãos, enfim, saudades de casa. E passados mais alguns dias as saudades reacendiam-se com as já famosas dores de ouvidos seguidas de tremendas otites próprias da idade. Mas as viagens imaginadas continuavam a ser para sítios maravilhosos. Mal começava a aspirar as primeiras emanações do carvão entrava imediatamente no mundo misterioso para mim do fim da linha. Ainda hoje, o recordar aquele cheiro, fantasia viagens que não fiz.