Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, março 27, 2009

FONTE DA ALMA








Quantas vezes choro? Não sei.
Não as conto, só as sinto.
Desde há alguns anos passam-se meses e meses que não choro.
Quando era mais nova parece-me que conseguia chorar com mais facilidade e mais assiduamente.
Não, não endureci por dentro nem sequei a fonte da alma, antes pelo contrário. Mas passei a chorar muito para dentro, a comover-me sem ver as lágrimas sentidas por causa do que aflige os outros. Virei-me ainda mais para fora. Vigiei bem mais de perto os males do mundo.
Mas épocas há em que o aperto dentro do peito me aflige e angustia e choro. Muitas vezes faço-o em frente ao espelho e o que me dá de volta não é o meu reflexo pois não é dele que preciso: reflecte o rosto das pessoas que me são queridas e de quem preciso para não me sentir tão só nesses momentos de fragilidade.
Tu és um dos meus reflexos.
Tu e tu também...claro que vocês também são!

quinta-feira, março 19, 2009

DIA DO PAI




Embora seja mãe algumas vezes tive de tentar “fazer papel de pai” por força de algumas contracurvas da vida.
Difícil esse papel que não consigo representar na perfeição exactamente por não ser pai.
Mas essas infrutíferas tentativas fizeram-me entender melhor o que está do outro lado, que essência tem o assumir o papel de pai, quais as referências, atitudes e formas de amar os filhos de uma perspectiva masculina.
A forma será diferente mas o amor é igual. Expresso de forma às vezes menos clara que o das mães, mas com igual força embora com contornos muito próprios.
Falo de pais com P maiúsculo, porque pais e mães minúsculos não são para aqui chamados.

Lembro aqui o meu pai e as memórias que tenho dele. As boas e as menos boas. Ele era todas elas.
Partiu cedo demais, quando eu ainda acreditava que os pais só morrem velhinhos.
A partir desse dia a sensação de vazio ficou cá dentro, bem fundo: e agora? Quem perceberá a minha tristeza quando passar pelo corredor em frente à sala, sem nada dizer, fingindo que tudo está bem? E quem me acenará com a mão, levantando o braço para que me aninhe debaixo dele.? E quem assobiará ao chegar a casa?
Será que a Lena se lembra daquela lata grande e redonda com flores vermelhas, a tradicional caixa de bolachas que existia em quase todas as casas? Tinha uma tampa terrivelmente difícil de abrir, e lembro-me que era esvaziada nas noites em que ela ficava à conversa com o pai. Tinha pena que essas conversas ainda não fossem para a minha idade. Sabia que os temas eram sobre os livros de ficção científica que o pai gostava de ler, acerca dos deuses que eram astronautas e dos vampiros que afinal eram anjos. Também falavam sobre os livros policiais, os da colecção "Vampiro" colocados lado a lado, direitinhos e amarelados numa das prateleiras do escritório.
Aquela caixa redonda tinha muito que contar.
A tampa era fechada à pressão, mantendo estaladiços os biscoitos e as bolachas lá em casa. Tão exagerada pressão fez-nos andar muitas vezes de rabo para o ar a apanhá-las do chão.
E o Artur, que recordações terá do pai? Tenho de lhe perguntar.
Todos nós nos lembramos dos anos de luta contra o whiskey e da estranha recompensa que o fez partir. Tantos anos de luta e esforço e, inexplicavelmente, a doença, o sofrimento e a morte era o que estava do outro lado da montanha. Estranho, revoltante, aparentemente incompreensível.

A melhor característica do meu pai? Além do amor por nós, o grande exemplo de amor pela nossa mãe.
Aqui ficam as palavras tornadas sentir.

quinta-feira, março 12, 2009

CONJUGANDO O VERBO



As nossas melhores viagens são, provavelmente, aquelas em que partimos regressando algures no passado. As que ficaram paradas no tempo das memórias e que teimamos em repetir, nem que seja para reter, mais uma vez, as sensações que nos trouxeram.

Falando de viagens, combóios, partidas e chegadas, disse Pedro a Isabel, com um sorriso nostálgico nos lábios:

" - Essa tua conversa fez-me recordar os tempos em que estava na tropa e tinha que me deslocar aos fins de semana de comboio para o Porto. O comboio-correio partia à meia-noite e a viagem durava toda a noite porque o comboio parava em todas as estações e só chegava ao destino às 7 horas da manhã. Era muito maçadora para quem viajava sentado mas, quando certo dia o meu pai me comprou um bilhete na carruagem especial da Wagon-Lit com cama, eu nunca mais quis outra coisa. Recordo-me de que adormecia mal me deitava ainda em Santa Apolónia e depois o camareiro acordava-me com o pequeno almoço quando chegávamos a Vila Nova de Gaia. Eram sempre umas noites em beleza que me deixaram saudades. Em especial aquelas em que eu acordava a meio e punha-me à janela a escutar os grilos, os ralos, as rãs e até, uma vez, um rouxinol, quando o comboio parava naqueles apeadeiros perdidos no meio do nada. Recordo-me de que nunca viajei acompanhado porque acho que os compartimentos eram individuais. "

Isabel não o interrompeu pois uma cor de felicidade coloria-lhe a cara, as mãos, e o sorriso.
Terminou o seu relato com uma pontinha de nostalgia. Pela saudade daquelas memórias ou pelo facto de ter viajado sempre sozinho?

Para certas pessoas não é sinónimo de terapia anti-stress fazer compras ou outra coisa parecida. Qual comprar roupa, qual restaurantes especiais, qual "spas" ou férias na neve, qual nada! As viagens é que são o verdadeiramente importante.

"- Minha querida, o melhor desta vida é conjugar o verbo ir em todos os tempos!"- dizia a tia Rosinda a Isabel.
Nunca ninguém conseguiu saber ao certo se aquelas saudades de viagens se prendiam, de facto, com uma tendência para "ir" fosse lá para que sítio fosse, ou se havia uma forte ligação com a vida que tinha feito com o marido durante anos e anos. Tinham viajado por todos os cantos do mundo, dentro e fora de Portugal...era mesmo conjugar o verbo ir em todos os tempos!
Isabel tinha uma opinião própria sobre isso: enquanto viajava com o marido a Tia Rosinda sabia-o indiscutivelmente a seu lado, longe de outras companhias femininas. Deixava para trás as suspeitas, as zangas e os ciúmes.Talvez tivesse razão. Nunca saberemos.

Quando não temos de viajar de um dia para o outro por um motivo inesperado, o compasso de espera, a contagem decrescente, o envolvimento na preparação e ensaio da viagem são os aspectos mais interessantes. O nosso imaginário entrelaça o que supomos que poderá ser com o que foi, algures um dia no passado, num projecto futuro mesclado de surpresas e "dejá vu".
As viagens feitas são, muitas vezes, a prática do que inventámos e ensaiámos milhares de vezes. Imagens vividas de um filme que projectámos no écran do querer. Sonho de sensações pelas quais nos apaixonámos.
Qual a próxima viagem?
Aquela em que estamos agora, neste combóio cujo percurso desconhecemos, cheio de embarques e desembarques, tristezas em certas partidas e pessoas especiais para fazerem a viagem connosco? Onde também circulam pessoas que quando desocupam o lugar ninguém percebe?
Viagem fantástica feita de fantasias, esperas, sonhos e atropelos. Estúpidos atropelos! Para quê? Não sabemos nunca em que paragem teremos de descer nem onde descerão os que viajam ao nosso lado e a quem amamos. Nessa altura da viagem a tristeza sentar-se-á ao nosso lado seguindo viagem até à estação onde deixaremos o combóio.

Conjugando os tempos do verbo.

segunda-feira, março 09, 2009

O LEITOR


História profundamente triste e profundamente bela, esta que se conta, vê, ouve e capta no filme “O leitor” de Stephen Daldry.
A beleza da paixão entre uma mulher mais velha e um rapaz de 18 anos; o efeito avassalador dessa paixão na vida do rapaz.
Uma paixão, o amor, um mistério e um segredo.
A descoberta do passado, os traumas e sequelas da Segunda Guerra Mundial.
O confronto colectivo do povo alemão e paralelamente o confronto individual de cada alemão com o (seu) passado, com a consciência, com as memórias, com a culpa ou a ausência dela.
Filme profundamente triste e profundamente belo.
Lembras-te quando te pedia para leres para mim até adormecer?

sexta-feira, março 06, 2009

ANJOS




“- Mas conta-me! Conta-me lá sem pensares que é sexta-feira... vá, não fiques assim chateado, já sabemos que estes dois dias são para a família.”- pediu Marília entrelaçando a sua mão na dele.

“- Sim, já me esquecia de te contar acerca do anjo que me guarda de noite. Não lhe conheço o nome, mas quero acreditar que seja o meu pai.”- respondeu Pedro olhando para a mão e segurando-a com carinho.
“- Ele também sempre teve a sua fé com o pai dele. Se eu pudesse, gostaria de um dia fazer o mesmo por quem sinto o que outrora o meu pai sentiu por mim.”- continuou.

Marília sentiu o arrepio do desconforto do ciúme. Sentia pena por não ser a mãe dos filhos dele e dos seus serem de outro alguém que não ele. Pressentiu que aquele sentimento de amor de Pedro para com os seus filhos nunca teria eco parecido nela ou nos seus. Pelos filhos Pedro tinha um amor distante de quezílias, paixões avassaladoras, de ciúmes ou de invejas.
Também ela sentia o mesmo pelos seus filhos. Pelos seus pais. E até por Ricardo, apesar de o trair com Pedro.
Que anjos a guardariam a ela durante a noite? Ficou calada durante instantes que pareciam não ter fim.

“- Em que pensas, meu amor?”- perguntou-lhe Pedro acariciando-lhe a face pálida.

“- ... Nisso que me contaste agora mesmo! Pensava que o amor é um sentimento tão forte que parece impossível perder-se com a chegada da morte. Chamamos-lhe sentimento mas podemos chamá-lo de tantas outras formas: energia, positividade, sensação, algo inexplicavelmente bom ou forte ou...sei lá eu!”.

Pedro olhava-a sem nada dizer, atento às suas palavras, apercebendo-se de um certo nervosismo.

“- Mas todas elas serão certamente meras tentativas humanas de transmitir algo importante entre todos nós e que faria perder o sentido da vida, e da vida entre as pessoas, se fosse comprovado extinguir-se com a morte. Acredito, não por me ter sido provado mas porque preciso de acreditar, que sentimentos tão fortes e genuínos como o amor entre algumas pessoas - incluindo o amor de pais pelos filhos e não só - perduram para além da morte da carne. E isso pode ser a essência e a origem daquilo a que chamamos anjos. Será?”- olhou para ele na esperança de uma resposta.

Pedro continuava calado e desviou os olhos fixando-os nas suas mãos entrelaçadas.

“- Quem melhor que um pai ou uma mãe muito queridos por nós, que tenham já partido, para nos embalar o sono, estar por cima do nosso ombro em algumas situações fazendo-nos companhia? Às vezes conseguimos senti-los tão bem que se estendessemos a nossa mão iríamos encontrar outra à nossa espera.”- continuou não desviando os olhos de Pedro.

“- Achas que é essa a ligação que conseguimos manter com os que amamos depois de termos partido desta vida? Parece ser tão pouco o podermos presenciá-los na sua vida terrena. Será o bastante e o possível para um anjo que já teve a sua caminhada concluída, que também já foi "velado" por um ou por outros anjos?”- questionava Pedro em voz alta como se Marília lhe pudesse responder com certezas.

“- Não sei, meu querido. Parece um refúgio este teu pensamento. Refúgio para algo que pode ter uma aparência tão brutal e árida como a morte, um corte tão abrupto e total com os nossos entes queridos que continuarão mortais após a nossa morte.”

Pedro pensava alto num exercício fluido perdendo a noção do tempo: “- Seria bom não termos de nos afastar eternamente de quem amamos. Seria bom reencontrarmos quem nos amou e a quem amámos, não achas Marília?”.

“- Pois era, sim. Não sei, não sei...O amor e o sofrimento devem ser as bitolas da nossa existência, suponho eu, que de ignorância estou cheia.”
Reparando nas horas despediram-se um do outro com um beijo precipitando-se para a rua que os esperava ventosa e fria. E cada um seguiu um sentido diferente.
Apesar da costumeira angústia da separação aos fins de semana não se viraram para trás tentando reter o outro por mais um pouco de tempo.
Aquele castigo, aquela separação forçada, aquelas duas famílias de permeio entre eles. Afinal também eles estavam no meio do amor.
O amor à família, aos filhos, ao conjugue maritalmente instituído.
Ambos sabiam que essa era uma das regras daquele amor que aceitavam e que sentiam há anos. Começara por ser um jogo convidativo ao romper da rotina.