Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, janeiro 23, 2009

PEDAÇO


Entrei em casa ao fim da tarde neste pedaço de tempo e de chão.
Reencontrei-me com o tempo e comigo.
Mas o tempo não cura, só vai tecendo o esquecimento para tapar as dores.
Vai escrevendo por cima. Reescrevendo a história.
Acalmando a impotência de não podermos voltar atrás.
O que pedirias tu se só pudesses ter um desejo?
BENJAMIM BUTTON

O ESTRANHO CASO DE BENJAMIM BUTTON


Mark Twain (1835-1910) disse que « a vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer com a idade de 80 anos e gradualmente nos aproximássemos dos 18."

Ontem, ao fim da tarde, o João telefonou-me para o escritório e convidou-me para ir ao cinema...pagava ele os bilhetes, não tinha trabalhos da escola para fazer, não havia testes no dia seguinte... Discurso ensaiado para eu aceitar.
Mesmo assim, desculpei-me alegando os motivos óbvios e normais de uma mãe ao fim de um dia de trabalho. Mas os argumentos dele foram mais fortes, mais frescos, mais tudo! E fomos.
Escolheu ele o filme: disse-me que não seria um filme para ele nem um para mim. Escolheria um daqueles que dá para os dois.

“-Oh, não!”- pensei para comigo, imaginando-me a gramar uma daquelas comédias americanas sem graça, já que filmes de guerra ele sabe que não tolero.
Mas fui. Por ele e por mim.

E para “memória futura” conforme argumento dele:
“- Mãe, temos de fazer estas coisas boas juntos; não pode ser só os estudos, as coisas chatas que têm de ser feitas, essas coisas “porque sim”. Depois, quando a mãe for velhinha não se lembrará de nada bom que tenha feito comigo. Quero que a mãe se lembre das sessões de cinema, das idas aos saldos, dos hamburguers do MacDonald's, dessas coisas que gostamos de fazer juntos.”

(Se ele soubesse que grande parte das coisas boas que recordo são com ele, mesmo as que me assustaram, mesmo as que me fizeram perder o sono ou o apetite!)

A "fita" foi fantasticamente bem escolhida. E inexplicavelmente apreciada tanto por mim como por ele, miúdo de 15 anos. Isto para não falar do Brad Pitt que continua aquele "pão", lindo de morrer!

À saída a conversa fez-me lembrar as que tinha há largos anos com os colegas de liceu, à mesa dos cafés da Avenida de Roma, depois de irmos às sessões do Alfa ou do Nimas.

“- Viu aquele pormenor do relógio quando mudaram de tempo?.. E reparou que quando os dois finalmente se encontram, no quarto dela, a câmara foca os postais que ele lhe enviara atados com uma fita de cetim branca...exactamente o mesmo que vemos dentro do diário da senhora que está a morrer no hospital...que afinal era ela, claro!”

Fez-me tão bem! Não fiz jantar, não lavei loiça, ri-me, comi pipocas, lixei-me mais uma vez para a dieta, gastei dinheiro em época de vacas e ordenados magros, deitei-me tarde, dormi pouco ...e hoje estou com uma tremenda dor de cabeça. Mas compensou. Compensa sempre.

« A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer com a idade de 80 anos e gradualmente nos aproximássemos dos 18."

Com os anos aprendemos, por vezes um pouco tarde, a não desperdiçar tempo ou oportunidades. E tantas outras coisas!

quarta-feira, janeiro 21, 2009

FOTOGRAFIA

Enviei-te uma carta. Ia num envelope já antigo, amarelecido pelo tempo e pelo pó. Escrevi o teu nome e endereço à mão com a minha melhor letra. Lá dentro coloquei uma fotografia que encontrei numa caixa de folha, ainda mais antiga que o envelope, e nada mais. Por trás tinha escrito uns números e umas palavras. Bastava para te recordar de nós.
A data atestava que tínhamos sido muito novos e que nos tínhamos amado desde cedo; as recordações que fizéramos tudo o que nos tinha dado prazer e que nos tinha sido possível.

"-Pouco, fizémos foi pouco...!" - costumavas dizer-me a rir.

Aquela fotografia tinha sido tirada há tantos anos! As máquinas ainda não eram digitais e lembro-me a risota que foi quando mandámos revelar as fotografias...achávamos que o senhor da loja iria olhar para nós de soslaio. Lembro-me que decidimos que iria eu para te poupar "à vergonha"!

Que ridículos e ingénuos que éramos. O empregado da loja de fotografia nem sequer olhou para mim de maneira especial. As fotografias vinham numa espécie de envelope semi aberto, com publicidade à Kodak, e ele nem sequer o abriu à minha frente. E eu também não o fiz para ver se as fotografias eram as nossas! Tive vergonha pois sabia que ali dentro estavas tu nua !

E tu, sentada no café mais próximo, lá estavas a sorrir com ar maroto à minha espera com pressa para as veres.
"-Mostra, mostra!"- pedias atrapalhada e apressada.

As fotografias ficaram tão bem, tão engraçadas e tão expressivas! Lembro-me que até enviámos uma delas para um concurso de uma revista.

Tinhas a pele tão macia que a película também assim ficou. A tua pele branca, lisa e arredondada, captava a atenção do fotógrafo e da câmara de tal maneira que todos os pormenores ficaram gravados: a cor dos teus cabelos escuros escorregando pelas tuas costas nuas, esbranquiçadas e tentadoras, os tons adamascados da tua lingerie amarrotada e suave, as tuas pernas convidativas, os teus pés egípcios longilíneos e descalços roçando um no outro. As tuas mãos ávidas do corpo procurando prazer no que tocavas. As maçãs que te acompanhavam em cima da mesa do atelier aromatizavam a atmosfera. Até os aromas quentes daquele dia ficaram nas fotografias, lembras-te? O nosso cheiro misturava-se com o das tintas ainda por esfregar e esmagar de encontro às telas, assim como me esmagava e esfregava de encontro a ti.

Eras bonita. Muito bonita e fresca como aquelas maçãs avermelhadas que nos dava a nossa senhoria. Lembras-te da D. Augusta? E do que ela nos dizia quando lhe pagávamos a renda com uns dias de atraso?

"- Não se come do amor, meus filhos. É só entusiasmo e paixão, mas dinheiro nem vê-lo, não é? Procurem outra vida, digo-vos eu. São novos, ainda... tenham tino e façam-se à vida. A menina é tão jeitosa, podia arranjar facilmente um daqueles com dinheiro. E você, meu garanhão, guarde a força para o trabalho!"- era sempre um sermão que dela ouvíamos.

Será que ainda te lembras desta fotografia? E do prazer? E do gozo em estarmos juntos? E das conversas infernais até de madrugada? E dos beijos? Ah, dos beijos é do que melhor me lembro.