Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

segunda-feira, abril 29, 2013


MERGULHAR


Atirei-me sem medo. Já conhecia aquele mar, aquelas marés, aquele silêncio contendo os meus sons e também os meus ruídos.
Os ouvidos tornaram-se e mergulhei no mundo de mim. Não que tivesse deixado os outros de fora dos meus sons e ruídos…eles estariam sempre lá, mas acolhê-los-ia dentro do meu peito com aquele baloiçar que o mar nos dá.
Quase sem me mover fui pairando em suavidade, naquela paz como se não fizesse parte do mundo real. Não, engano meu, o mundo, os problemas, as dores dentro do peito, os amores e desamores, as angústias e alegrias flutuavam também dentro de mim, mas cá dentro do peito as ondas ficaram mais meigas, mais suaves, mais amigas.
Não me forcei a não chorar deixando as lágrimas corroerem-me as entranhas.
Deixei-as correr misturando-se com o manto azul que as atendeu nas suas mãos. E os meus olhos tornaram-se da mesma cor.
“- Ah, o tempo vai ajudar-me” – pensei enquanto sentia os abraços da água no meu corpo tão dorido e magoado.
Mas o tempo só ajuda se o ajudarmos a ele.
“- É tão difícil!” – falei comigo mesma no meu mar de silêncios. “ – E quem me prometeu que aceitar, rearrumar, sentir, viver, amar e ter consciência seria fácil? Ninguém!”
Vim à superfície da água e percebi que o tempo não tem tempo; de contrário não teria aguentado tanto lá em baixo.
Em cada um de nós o tempo tem o seu tempo, o seu embalo, o seu amor e as descobertas dos seus trilhos.
Lá fora os ruídos feriam-me os ouvidos…”- Mergulho novamente? – pensei.
Seria tentador fazê-lo vezes sem conta mas cá fora era o lugar onde tinha de viver. Mas sabia poder voltar sempre e isso apaziguou-me o peito.
O peito onde mora o coração, onde se refugiam as dores e as alegrias. Onde estamos e somos.
Nadei até à rocha e sentei-me ao sol de olhos fechados.
Brilhava mais e o coração batia compassado.
Ergui as pálpebras e esqueci-me do meu nome. Não interessava qual era.
Era eu com o mar nos olhos, a poesia nos dedos e a imensidão no sorriso.


quinta-feira, abril 25, 2013


25 de Abril de 1974


Naquele dia a casa alvoraçara-se saindo da sua habitual calmaria e rotineiros rituais.
“ - As meninas hoje não saem de casa !” – o meu pai era a autoridade máxima lá em casa.
A minha curiosidade era tamanha que não me contive perguntando, várias vezes, o porquê e o que era e tantas outras coisas... Teria havido algum tremor de terra durante a noite que não tivesse dado conta?
Mas as palavras começaram a ser trocadas entre os adultos, amigos em telefonemas e as letras da palavra R E V O L U Ç Ã O começaram a fazer algum eco e sentido.

Exactamente no ano anterior tinha sido “convidada” a sair do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, por andar a colocar autocolantes contra a guerra colonial nas paredes das casas de banho…. Claro que fui "apanhada" e como era boa aluna não me expulsaram: convidaram-me a sair!
Crise lá em casa, claro, mas a vida seguiu em frente e passei para o Liceu Rainha D. Leonor onde tudo era já mais liberal.

Não tinha consciência política, só sabia o que via: os filhos dos amigos dos meus pais regressavam de uma guerra num estado lastimoso fisica e psicologicamente. E outros nem tinham regressado. 
Isso fez com que as perguntas começassem a fervilhar na cabeça e que o coração lhes desse forma sentido as respostas  que ia colhendo aqui e ali.

Hoje queria ter um presente que não tivesse sabor a um passado remoto e não esta sensação de ter uma corda a rondar o meu pescoço.