Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

terça-feira, outubro 24, 2006

SEM FLORES



“- Sossega” - disse-me afagando os meus cabelos espalhados no regaço.
“Ao longo da vida, os sobressaltos e as perturbações que não prevemos, os nervosismos, as intuições, as possibilidades perdidas são coisas que não podes, realmente, controlar.
Podes lutar por aquilo que queres, forçar os caminhos a curvarem-se para poderes caminhar rumo à tua quimera...mas as inquietações tanto fazem parte do sucesso como da não realização dos sonhos !”.

Já aninhada no seu peito percebi que até as minhas lágrimas e angústia faziam parte da continuidade da vida.

quinta-feira, outubro 19, 2006

O SOL DO MEU CÉU




Recebi ontem à noite uma carta em Braille.

Consigo ler, através dos meus dedos, os pontinhos espaçadamente arquitectados e cadencialmente intercalados, supondo que terão muitas palavras escritas.
É possível que traduzam sentimentos, descrições, relatos ou transacções bancárias, facturas, insultos ou declarações de amor, sentenças de morte ou pura e simplesmente um pedido de ajuda de quem é cego, cujos olhos não veem o mesmo que os teus.

Não sei se este envio foi um engano ou é uma campanha de marketing para chamar a atenção para a associação portuguesa dos deficientes visuais. Se é conseguiram sensibilizar-me muito mais do que suponham ou intencionavam.

O que seria de nós sem podermos ver tudo o que vemos todos os dias e nem damos conta? O que sentiríamos se nunca tivéssemos visto a luz? E o que seria de nós se, de um momento para o outro, essa luz se apagasse?
As cores, as formas, os movimentos, o belo e o horrível, as feições das pessoas amadas e as carantonhas de quem não gostamos. Os vultos dos indiferentes. O toque dos meus olhos nos teus.

Conservo nas mãos este papel sensibilizado com gravações tácteis, fecho os olhos e agradeço a Deus não ser totalmente cega.

terça-feira, outubro 17, 2006

SEGREDOS (III)

AMOR SOLITÁRIO




Vivo agora aqueles instantes esverdeados de Outono de quando está prestes a chover.
Ainda me sento com a janela aberta: esses são os últimos fios da teia do Verão. Esses e os resquícios acastanhados do corpo sem roupa.
A música toca baixo para não chamar a chuva, mas ela virá na mesma e com a mesma duração de sempre: demais!

Os olhos demoram-se nas páginas dos livros relidos tantas vezes sem dar descanso ao cansaço dos anos.

Sei que amanhã recomeça a semana e que tenho de partir mais uma vez.
Fecharei bem as portadas das janelas, as camas ficarão feitas, os sofás solitários, a loiça arrumada, a manta de quadrados dobrada.
Duas voltas à chave- como me pedia a minha Mãe. Sempre duas voltas!

E partirei sem olhar para trás com receio de querer voltar.

segunda-feira, outubro 16, 2006

SEGREDOS II





Se é o essencial que tu demandas,
meu amor,
não te esqueças que é no andar dos dias,
no seu labirinto,
que se encontra o fio da meada que nos tolhe.
Que nele está escrito o que se tiver de viver.
As ausências e as demoras
que transpiras
quando me olhas sem sossego.
Não me procures, então,
sem que o tempo te tenha dado um sinal de mim.
Se assim for, talvez amanhã tu voltes a acontecer.
A tua boca abrir-se-á num sorriso de chegada,
os teus olhos brilharão de novo
e o teu calor envolverá os murmúrios
que vivem no meu interior
quando, nesse dia,
os meus lábios acariciarem os teus.

terça-feira, outubro 10, 2006

SEGREDOS ( I )



Reparo que o nosso amor é agora um jardim ao abandono,
onde os pássaros se calaram
e as flores perfumadas deixaram de ser eternas.
Que tolos fomos pensando que seria nosso para sempre o jardim das madrugadas!
Por ele vagueio na nostalgia de um amor perdido, sem saber se brotará de novo.
Parece-me tarde para recomeçar, para acreditarmos outra vez. Mais uma.
Também o nosso tempo tem minutos, passa e pesa, demora e foge.
Anuncia-se uma Primavera rigorosa lá fora.
Sinto o seu chamamento perdido na chuva que cai bruscamente sobre o meu corpo

voltado para Lisboa.



quarta-feira, outubro 04, 2006

REALIDADE VIRTUAL






De olhos bem despertos
Vejo a imagem dos nossos corpos
Como se exterior a nós fosse capaz de ficar
A ver
A ver-nos amar