Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

BOTÕES DESAPERTADOS



Este fim de semana foi altura de arrumar papéis e sentimentos. Sacudir cobertores e dobrar camisolas. Abotoar os botões dispersamente desapertados das camisas brancas e dos punhos dos casacos. Abrir as portas e gavetas dos armários para que o ar entrasse.
Encontrei uma carta tua datada de há muitos anos. Reli-a em silêncio, um silêncio ainda pesado pela tua ausência.

" Querida e doce Sara,
Sabes que dormi pouco, de ontem para hoje. Não me sais do sangue. E não me respondeste à mensagem que te mandei ontem...Depois calcei as pantufas e...senti os teus pés.
Senti-os a correr pela areia da Caparica, senti-os no tapete do carro quando, excitada, fazias amor, saída do "Emmanuelle", senti-os nos corredores do IPO, lutando pela vida do teu pai. Estava ali o calcorrear de uma vida, a alegria, o prazer, o andar, o lutar, o sobreviver. Senti-os também pouco acompanhados, nessa caminhada.
Muitos passos solitários, muitos passos cujo único som é o eco que deixam. Isso, eu não tenho dúvidas. O teu próprio discurso é estruturado. Tens um discurso de alguém que falou muito tempo consigo mesma. De alguém que nunca teve interlocutor real.
Mas, enquanto tu me descobrias os segredos nos restos do café, segredos negros, tão escuros que tu própria não os decifras, deixaste-me os teus no calor das pantufas, singelo sinal que se poderia ter concretizado no cheiro do teu corpo, do teu sexo, nos meus lençóis mas que ontem teve todas as barreiras, todos os respeitos, todos os pruridos, todas as convenções. Digamos que nos portámos socialmente bem, que assim podemos andar de cabeça levantada, conquistado que foi o respeito dos abstractos outros, espelho do espelho da nossa consciência. E, sendo assim, tudo está bem. Mesmo quando a cama arrefece, mesmo quando o coração bate algures fora do peito, mesmo quando as mãos, clandestinamente tocam o sexo, masturbação clandestina, pontualmente vivendo um momento que não é o real.
Ontem, estivemos ambos "fora do baralho". Completamente. Julgo que tens perfeita consciência disso. Fomos um caso em mil. Em dez mil. Que mulher e que homem, desejando-se, estariam uma noite inteira sozinhos respeitando os ausentes?
Senti-me a noite inteira como um agrilhoado com a fonte em frente aos olhos. Bastava um gesto, um movimento mais e as correntes deixar-me-iam colocar a boca na tua boca, no teu sexo. Beber (te), enfim.
Mas as correntes fizeram barulho toda a noite. Não nos movimentos mas nas palavras. Nos movimentos foste, aliás, totalmente feminina, no sentido literal do termo: foste infantil, provocadora e maléfica como só as verdadeiras mulheres o conseguem ser. As tuas pernas não pararam a noite inteira, frente aos meus olhos, por vezes descobertas até às coxas, mas sempre cobertas por uns collants que te recusaste a tirar. Como se a transparência daqueles collants fosse a última prova pela qual a consciência passaria no tempo que levaria a despi-los.
Mas as palavras foram muito mais opacas que os collants. Elas demarcaram o território do possível - curioso que, quando abordámos o assunto, tu te levantaste, o vestido cobriu definitivamente as tuas pernas. Já depois, voltaste a sentar-te, definidas como estavam as categorias, isolado o que poderia ser a transgressão. O que fizémos ontem, aliás, em toda a conversa sobre nós, não foi reconhecer os impedimentos mas, antes, reconhecer a possibilidade da transgressão. Ela já se tinha verificado no simples facto de saberes que íamos estar sós. Tratava-se, portanto, de reconhecer a existência daquilo que estava a ser vivido. Eventualmente de inventar um novo nome para a transgressão, De pacificar com palavras uma consciência que estava longe de estar.
No carro, de regresso a Lisboa, mordeste-me as mãos, lambi as tuas. As máscaras caíram. Nenhum pecado foi cometido. O pecado seria continuar o teatro.
Voltei para casa e não consegui dormir. Vê se vens mais vezes, nem que seja para falarmos na possibilidade impossível da transgressão. Nem que seja para depois voltarmos para casa e sonharmos com as coisas que não fizemos. Beijos."


Quanto tempo tinha ficado ali com aquele papel na mão? Não sei. Mas o suficiente para o ler e relembrar num "carroussel" de recordações o que foi, depois, a nossa vida até nos perdermos um do outro.
Os meus pés continuavam dentro de pantufas e pouco acompanhados na caminhada.
Tornei a dobrar a carta e devolvi-a à caixa onde a tinha encontrado.