Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, abril 21, 2006


APRENDIZ



Com a vida aprendi muitas coisas que não vêm em livros ou compêndios. Coisas que não se podem ensinar ou transmitir. Coisas vivas que só o são quando vividas.


Descobri, por exemplo, que a subida de um degrau da íngreme escadaria do pensamento faz crescer o nosso cérebro. A partir dessa altura nem ele nem nós seremos os mesmos, nada mais será igual ao momento exactamente anterior.


Desde há uns anos para cá tenho descoberto que com o coração se passa o mesmo: cada desilusão ou cada mágoa fá-lo retroceder no tamanho, na cor, na textura e na capacidade.


O meu hoje está pequenino.

TRANSCRIÇÕES EM FORMA DE ADEUS


"(...) E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone.
Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e a das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam... rãs, corujas e grilos e um espesso calor sobre a devassidão da cidade.
E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas.
Eu acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido.
Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo poderia ser meu para sempre."
Miguel Sousa Tavares, in No te deixarei morrer David Crockett Eternamente

segunda-feira, abril 17, 2006

TRANSGRESSÕES



Revisitações

Exposições

Viagens

Sonhos

Anonimato

Paixão

Intimidades

Cumplicidades

Caminho

Procura

Missivas

Esconderijos

Ninhos

Danças

Contos

Histórias

Gemidos

Gritos

Assombros

Desafio

Risos

Sorrisos

e

Mágoas.


E HOJE É A HORA DE DIZER ADEUS,
MESMO QUE NÃO ME OUÇAS...


Há dez anos Silvia e Luis fizeram o que a maioria de nós nunca teve coragem para fazer. Nem para decidir e assumir. A mudança.

Encontraram-se, refizeram a vida e mudaram-se para o Alentejo. Deixaram de ser seres pobremente urbanos e tornaram-se seres ricamente rurais. Com toda a riqueza de poderem viver a vida com tempo e qualidade. Hoje em dia é rico quem tem tempo e não quem tem bens. Após terem-se reconhecido no eco um do outro deixaram a selva de asfalto, o stress urbano, e repousaram o seu amor, enfim, nas planícies alentejanas com os seus animais e com o mar ao pé.

Mas há cerca de um ano Silvia reconheceu que algo de errado se passava com ela. Depois do banho tinha sentido um caroço no peito, algo minúsculo mas palpável. Alertada pelas campanhas contra o cancro da mama apressou-se a ir ao médico.
Passadas poucas semanas o veredicto foi mais aguçado que a ponta de uma lança, atingindo-a a ela, à vida e aos sonhos que tinha construído com o Luis. E quem era o Luis sem ela e sem os seus sonhos?..E sem a vida que embalavam nos braços cheios de abraços? E o amor? ...Meu Deus, não era verdade! Não estava a acontecer...parecia que Deus se tinha enganado!

Como era possível continuar a viver com aquela espada sempre e sempre em cima das suas cabeças?!
E tão injusto! Depois de tudo o que tinham vivido anteriormente, sem sossego e sem eco, conseguiram encontrar-se, apaixonarem-se um pelo outro e pela vida. Conseguiram, finalmente entender a vida... passou as ser a mesma vida vivida por duas pessoas. A mesma alma repartida por dois corpos.

Durante dez anos tinham vivido um para o outro, um com o outro e para a compreensão da vida e das coisas. Os animais, as flores e as planícies do Alentejo foram os seus mundos dentro de um grande mundo. O deles.
E após tantos anos de construção ...a morte ?! O sofrimento, a doença? Que sentido tinha ? Mas que grande injustiça, sentiram os dois com aquele obstáculo intransponível.

Mas da mesma maneira como apreenderam a vida e o amor, continuaram juntos naquela que seria a grande batalha.


Silvia morreu há três meses. Três longos e tristes meses para o Luis.




Não fui ao enterro da Silvia. O Luis não disse nada, não telefonou, não avisou.
Deixou que as planícies imensas a levassem com a mesma serenidade com que a tinham trazido. Com o mesmo encanto.

Na semana passada o Luis escreveu-me dizendo que, apesar de tudo, devia estar agradecido por ter tido o previlégio de ter encontrado a Silvia, de terem vivido um grande amor durante dez anos e também de ter podido viver a seu lado até ao último trago. Até ao adeus.
Um adeus até à eternidade.

Falei com o Luis e sei que não devemos ir visitá-lo tão depressa como a nossa amizade o exigiria.
A companhia dos amigos será preciosa, mas não agora.
Temos de entender que o luto é o processo de sofrimento normal depois da perda, que o choro e o desânimo morarão no seu coração durante meses.
Talvez para o próximo mês, talvez nos feriados da Revolução ou do Dia do Trabalhador. Mas não já.
O Luis precisa de reconhecer os seus espaços, os seus silêncios, as suas dores, os amores e as ausências da Sílvia.

Escrevi-lhe dizendo, basicamente, que estamos aqui, estamos com ele, estamos juntos na sua dor. Por mais que saiba que isso não lhe trará consolo nem apaziguará as suas dores.

Na volta do correio enviou-me uma fotografia e umas linhas escritas ao longo de várias horas...Com o aroma das planícies de um Alentejo à beira mar.


“(...) Tenho andado meio metido para dentro,
não me tem apetecido ver ninguém…!
Mas deve ser normal...
Estive para ir ver o mar mas não fui.
Ontem à tarde pensei em mandar-te um mail só com fotografias das flores do monte…apetecia-me partilhar aquilo com alguém
Tirei as fotos mas depois desmotivei-me e não mandei…
Também achei que não me apetecia escrever e aqui estou,
Já andei a cortar erva…
Na verdade, não sei o que me apetece neste momento.
Apetece-me ser e não ser.
Ter e não ter.
Apetece-me as duas coisas ao mesmo tempo.
Talvez seja tempo de sentir estas coisas…


Talvez do receio de ter de recomeçar do zero.
De não saber se vão vir forças para o fazer…!

Entre esta frase e a de cima decorreram várias horas.
Pois recomecei agora a escrever, depois de ter adormecido no sofá da sala.
Ainda andei pelo monte e brinquei com os gatos.
Confesso que me sinto um pouco assustado, por pensar como a minha vida mudou de um dia para o outro.

Não sei se vou conseguir amar outra vez e isso assusta-me.
E tudo agora me parece ainda mais efémero.
Eu já sabia que os momentos de felicidade eram
momentos fugazes mas de grande intensidade,
e que a vida nada é do que parece ser.
Mas isto dói para caraças!
Li o poema que me enviaste do Miguel Torga..
...Reencontrei-me nele.
É por este caminho que quero ir.
Hoje enquanto te escrevia caíram-me algumas lágrimas ainda.
Já não chorava há uns dias.
Mas não me importo de chorar,
E é bom escrever sobre isso…!

Isso encerra em si o poder de me fazer sentir
menos só.

E hoje é a hora de dizer adeus,
mesmo que não me ouças...(...)”