Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

segunda-feira, outubro 31, 2011


REFLEXO


Teria preferido não o ter visto no cinema. 
Preferiria que ninguém lhe viesse contar nada sobre ele. Emergia sempre um travo amargo, saudades, lembrando que os sinais estiveram lá ao longo dos anos.
Quando lhe falavam ou contavam os reflexos dele nos espelhos tudo ficava estreito, minúsculo do lado de cá até se tornar insignificante nas palavras que ouvia.
Viveu mais uma vez a mágoa.
Teve de deixar-se vivê-la, olhá-la, limpar-se dela e finalmente concluir que era preciso deslocá-lo, assim como já acontecera com outras pessoas, para uma prateleira muito mais acima, muito mais longe do coração. 
Daquelas que nem se lá chega para limpar o pó.
A constatação ajudou embora o sentimento atropelasse o raciocínio.
Respirou fundo e seguiu a sua vida sem mais amargura.
E com menos uma ilusão.
DESAMORES































Olhos vazios de cor e de esperança. Corpos sem contornos, ossos despidos com um resto de vida caída, enroscados pelos cantos onde pensam encontrar algum conforto.
Escondidos do que não querem viver e da espera que já vai sendo mais longa que eles soltam com voz trémula palavras sem sentido dum passado onde só eles vivem. Meu Deus, que sofrimento desmesurado sem consciência do que dói ou do que ficará por contar nesta espera de corpos engavetados em quartos brancos, sozinhos com as recordações do que já não conseguem saber. Camas postas lado a lado como se de noivos se tratassem. Noivos numa valsa lentificada com odor a urina e a morte. Esgares emitando sorrisos quando passo e aceno como se nos conhecessemos há muito. Habituei-me a sorrir e a balbuciar qualquer coisa sempre que percorro aqueles corredores infinitos de tamanho e de tristeza. Tanto faz! Quaisquer palavras servem à avidez de ser eu a filha, a neta, a mulher, a amante, a sogra ou simplesmente a assistente social que lhes dê atenção ou esperança de ainda estarem a tempo de não ficarem sós e por ali.Tento olhar sem ver para não ter de reproduzir vezes sem conta esta emoção de marcas cheia. Mas quem pode não ver? Solidão, a enorme doença de tanta gente, adensa-se com os anos que passam. Histórias em que não se pode acreditar por decência: um irmão que deu a irmã como morta para ficar com a casa e os seus haveres. Um filho que não mais visitou a mãe deixando-a a gritar por ele durante meses a fio até à demência se ter instalado no lugar do desgosto.
Corpos desligados das cabeças, nos quais as feridas, o sangue e as dores já não se sentem. Já só existem para quem, como eu, os vê de fora. Para quem, como eu, não queria estar tão perto de esperas tapadas com lençóis brancos, em camas pequenas e nuas, caras sem nomes, iguais, sem cor, sem réstea de esperança e sem visitas. Alguém grita de forma repetida e enlouquecida, mas já não incomoda ninguém. Só eu oiço realmente a loucura gritando repetidamente os mesmos sons. Marcas do tempo e marcas da morte em solidão. A solidão é o castigo para quem morre velho e lentamente. Peguei-lhe na mão. Cabeça rapada, olhos tão enterrados nos restos do rosto que mais pareciam água, lábios enrugados metidos para o sítio onde um dia existiram dentes. A língua saiu-lhe para fora da boca tentando pronunciar algo. Adriana era o seu nome. Morreu esta tarde só comigo a seu lado e o resto das noivas da morte, todas vestidas de branco, que ainda lá ficaram. Calma, muito calma, tentava levantar a cabeça de vez em quando e abria muito os olhos tentando ver…o quê? Não sei. A mim não me viu certamente. Sei que sentia a minha mão agarrando-a para que não a deixasse até adormecer. E adormeceu.“- Era uma mulher muito bonita, sabe? Está no lar há mais de 20 anos e aqui na enfermaria há 3. Tem quase 95 anos se fizermos fé na cédula. Era muito bonita, a D.Adriana. Teve um filho de um senhor importante...parece que muito conhecido…levou-lhe o filho, não o perfilhou mas levou-lho. A partir daí teve muitos amores, era muito linda, era! Mas não queria tê-los muito tempo. Não confiava. Nunca mais confiou em nenhum, ao que consta. O filho ainda aqui veio umas duas vezes. Depois nunca mais o vimos... deixou de mandar ajudas como antigamente. A partir de certa altura a pensão dela era integralmente entregue ao lar. Passámos a ser a família dela. Boa ou má, fraca ou forte.”- ia contando a empregada auxiliar enquanto mudava as camas. Às vezes há dias piores que outros, nos quais as sombras passam por ali como asas negras que batem nas esquinas da dor. Naquela tarde não tinha mais ânimo para não me deixar abater: gemidos sem fim, torturas de quem já não encontra a porta de saída, esperas com um fim anunciado e pleno de solidão.Indescritível. Indecifrável. Incompreensível.Nas mesas de cabeceira…nada. Nunca está nada. A um canto, ao lado da única cama impecavelmente feita, reparo em três molduras numa das mesinhas de cabeceira. Fotografias a preto e branco. Retocadas e expressivas. Ela numa, ele noutra e os dois na terceira. Ela partiu já há uns dias, disse-me a enfermeira. Não sabem a quem entregar as fotografias, pois ninguém as reclamou nem ao corpo!“- As fotografias era para ela não se enganar quando chegasse ao céu. Tinha receio de não o reconhecer, dizia !” - continuou a enfermeira com um sorriso carinhoso. “- Antigamente ainda existiam histórias de amor, sabe?”- continuou olhando-me nos olhos como se quisesse falar da vida.Caira já a noite e eu não deveria ali estar. Não fazia parte daquela história...ainda. Não reconheceria bem os andamentos e as deixas daquelas danças nocturnas.A noite trazia novos ecos e novos encontros. Também ali bem como fora daquele inferno. A noite, os fantasmas, as sombras e o eterno pesadelo de poderem ter partido sem saber. Levantei-me e comecei a percorrer o corredor de volta para a porta. As portas das salas repetiam-se à esquerda e à direita, iguais, sempre iguais, com o mesmo cenário lá dentro. O cheiro causava-me náuseas.Aquele odor parecia vir de uma imensa panela ao lume que ia libertando vapor com cheiro a urina e a peixe podre. O chão parecia resvalar para dentro dos sorrisos tristes agarrados a bengalas e andarilhos. Mãos que me iam agarrando nesta corrida querendo agarrar a réstia de vida que lhes foge todos os dias. Finalmente cheguei ao fim do corredor e abri a porta para a rua. Foi como se me libertasse do fundo do mar e finalmente deixasse entrar de novo ar nos pulmões. Respirar fundo para sobreviver ao desmaio que avançava a passos largos vergando-me sobre o estômago. Sentei-me no degrau de cabeça entre os joelhos, com as mãos na cara gelada, percorrida por suores frios e mãos de velhos. 
Desatou-se um pranto dentro dos meus olhos e do meu peito apertado por aquele convento de fantasmas gritantes. Inevitável não pensar em nós.
O enjoo e a certeza da inevitabilidade sacodem-me as entranhas e não acalmam o pranto.
Com a mão alcanço a relva fresca e húmida trazendo-me novamente a calma e a força para voltar a passar aquela porta.
DO AMOR 




"Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem. 
Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor : o que temos pelos outros. 
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos. " 


 Agostinho da Silva, "Sete Cartas a um Jovem Filósofo

sábado, outubro 29, 2011

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Três dias. Loucos, vazios, separados entre si por noites vazias, feridas onde o espírito mergulha com um turpor de demência.
Milagre de amor, voltar à escrita, voltar a confessar ao papel o que só a ti confesso.
Entre a caneta e a folha em branco volta a realizar-se o acto de amor que alcança em si toda uma volúpia muito especial.
Tenho a sensação estranha de que não estou a escrever para ninguém, que uma vez terminada a folha vou, não rasgá-la porque me rasgaria a mim próprio, mas lançá-la numa caverna funda, muito funda e negra, onde como numa mágica medieval a deusa encantada se materializaria a cada página que lhe dedico.
Creio que acertei, que é isso mesmo, para te sentir, ainda que ilusoriamente tenha de escrever qualquer coisa, senão para ti, pelo menos com o meu pensamento no teu regaço.
Não é uma vocação literária estrangulada que me chama; é uma paixão que o exige.
Tenho o fio destas letras a que me agarro com desespero, pois sei que depois delas vem uma vez mais a solidão.
Não te vás ainda, segura na doçura das tuas mãos a minha pobre alma, aquece um pouco mais o meu espírito na limpidez dos teus olhos. Mas será que te posso pedir tais coisas? Terei esse direito?
Abre a tua mão, fecha os olhos e não olhes o abismo, basta que eu lá caia, deixa que eu caia pelos dois, não deixes que a vertigem te precipite nos meus braços.

sexta-feira, outubro 28, 2011


DIÁRIO MENTAL




5
Gota a gota os líquidos incolores caiem marcando o tempo, a espera. As cores esbatem-se na memória.
Luzes fluorescentes ferem os olhos que tento, sem grande sucesso, manter abertos.
Cores azuladas, esbranquiçadas rodopiam à minha volta acompanhando a valsa da dor e do sofrimento.
Gota a gota invadem-me as veias com catéteres e curas urgentes, rasgando-as, tentando apanhá-las enquanto fogem como podem, rebentando a cada toque.
Tubos de silicone transportam o tempo e a vida. 


6
Presa a tantos tubos não ousava mexer-me para ver a esperança entrar nas veias com manchas de sangue escuro derramado.
Agulhas e borboletas levavam para cá e para lá o sangue. O vermelho estava lá sempre. 
O cheiro era mesclado entre as tentativas assépticas, os químicos e o suor de lutar contra a infecção, sobreviver.



s
A memória do cheiro da pele da Ana foi a agradável dádiva de vida no meio dos dias lutando contra o contrário entre cheiros nauseabundos e nauseantes. Era a lembrança da possibilidade de vida cá fora.
A mão dela na minha cara, as festas no cabelo e o seu sussurro: “ Mãe...sorri para mim, consegues? Tenta sorrir, seria o teu melhor sinal. Força.”

Lembro-me da incapacidade sequer de abrir os olhos e que a minha voz saía como se não fosse a minha. Tentei mas certamente não consegui.

Mãe?... sorri para mim e para o teu segundo neto que vai nascer...consegues? Ainda é segredo mas a ti digo para que tentes lutar contra isto tudo”.
Sorri e sei que abri os olhos e vi um sorriso lindíssimo inundando aquele canto do hospital.


d
O soro, a medicação agressiva caem gota a gota a marcar o tempo que falta para acabar o sofrimento, a nausea, as dores, o mal estar. As dores, as dores, as dores.
Tempo que está a ser vivido no mundo inteiro, estes mesmos minutos, mas de formas diferentes.
As dores pioram de vez em quando lembrando-me onde e como estou, mas a espera diz-me que poderei melhorar e viver minutos diferentes, esperas diversas, outras sensações.

As veias cativas das agulhas massacram-me a carne e os olhos, desenham os contornos do corpo, simples e fraco corpo mero guardião da alma. Por isso vai ter de resistir mais uma vez?



2
Os combóios passam perto da janela do lado direito da cama onde jazo e a cada compasso de passagem recordam-me que ainda cá estou e que o mundo lá fora também.
Durante a noite era o único sinal a que me agarrava, além da troca dos tubos de silicone e do sangue, do sangue, do sangue.
O barulho dos combóios deixou de ser incómodo passando a essencial.
À noite os combóios são muito mais espaçados e alguns devem ser muito compridos pois demoram a dizer-me adeus.



3
Mais um dia em que o tempo corre devagar, devagarinho ao ritmo dos frasquinhos pendurados lá em cima, quase em cima da minha cabeça.
Parece que estou no Alentejo profundo. Pelo menos isso! A calma, a tranquilidade, o campo, a Natureza e o que nos aproxima de nós.




EX- PERITONITE
ou
A SAÚDE NÃO AUGURA NADA DE BOM


Foi uma surpresa perceber para quem sou, realmente, importante.
Esperava que os carinhos fossem teus 
ou teus 
ou teus  
ou ainda teus. 
Mas não, nem os vi ao meu lado na cama do hospital, nem os senti na ternura e no amor de quem lá esteve.
Agradeço e dedico o meu amor e carinho a todos os que lutaram comigo durante dias e que me ajudaram a voltar dizendo-me como era importante para a vida ter-me por perto.



OBRIGADA DO FUNDO DA ALMA QUE AQUI TENHO DENTRO CHAMADA AMOR.
Ana M., Ana Maria, André, Fofo, Gina, Ingo, João Maria, Maria, Paula C., Sandra, Tenente.


Espero abraçá-los em breve.


segunda-feira, outubro 17, 2011

OUVINDO





                         a noite foi demasiado longa sem um beijo
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Nunca pensei que o emprego me fosse tão difícil de suportar. Várias vezes passei em frente à tua secção, louco, asfixiado, esmagado por uma saudade que me retalha. A tua secretária vazia torturava-me, a ausência do teu olhar fitando-me fortemente por detrás dos vidros era-me insuportável.
Várias vezes liguei para tua casa sabendo que ninguém iria responder, mas o simples facto de saber que o telefone tocava junto dos teus objectos, perto dos teus móveis e da tua vida fazia-me chegar um pouco a ti. Pobre e triste consolação da verdade perdida no deserto que morde caules secos na esperança de encontrar água.
À tarde repeti o percurso que nos levou à separação, nesse dia em que tentei mostrar-me forte e desprendido, mas em que estive perto de soluçar quando nos separámos.
A Rua de D. Estefânia era a mesma, mas faltava tudo, faltavas tu;  procurei nos meus lábios o último vestígio do nosso beijo de adeus, sentindo-te sem te ter, pairavas em torno de mim e não podia segurar as tuas mãos nas minhas, como gostava de fazer.
Tive a sensação de estar louco ou embriagado, debatendo-me na angústia dessa saudade que não posso mitigar, numa separação brutal que não consigo vencer.

Tens razão, soubesse eu onde te encontras e correria para ti fosse onde fosse; afogar-me-ia nos teus braços, dar-te-ia uma torrente de beijos apaixonados demonstrando o meu amor. E como me senti um cego só por te não poder ver.
A ausência não me está a ajudar nada, antes pelo contrário, está a dar a solidez da pedra à minha paixão por ti.

Deixei de te ver há três dias e um anel suave e ao mesmo tempo louco calcifica-se, robustece-me, ganha a nitidez da rocha e a fúria selvática de amálgama contida.

Como irá ser quando te voltar a ver? Que força poderosa terei de encontrar para não te abraçar como um louco, seja onde for? O que terei de despedaçar para ir ao teu encontro?

Como vês não há nada de calma reflexão neste período; há sim um mar revolto que se debate tentando alcançar terra firme.
Não te aproximes amor, serias envolvida para todo o sempre num turbilhão arrebatador.

Vou deixar-te por hoje; vou calar tudo e aparentar o ser que não sou, a calma e a segurança que não tenho.
Adeus amor, até um dia.

domingo, outubro 16, 2011

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O teu postal do Vimeiro chegou hoje às minhas mãos.
Senti-o frio, distante, vindo de muito longe. Senti a tua tristeza e a tua ânsia de vida. Senti naquela meia dúzia de linhas a ânsia de liberdade; nunca ta tentei tirar, antes foste tu que se enredou. Mas, por isso mesmo, tomei uma decisão, vou suspender estas notas difíceis, vou ajudar-te a soltar-te da teia que te faz sofrer;  até que me chames, até que precises de mim.

Não confundas a minha atitude com deserção ou abandono; estou junto a ti minuto a minuto, hora a hora, mas se souber, sem interferir na tua vida, solitária mas viciante, prestes a estender-te a mão logo que ma peças.
Se o meu amor nada mais pode permite, ao menos, que seja um olhar silencioso.

sexta-feira, outubro 14, 2011

NÁUSEA




A erva cresce nos vidros e muros 
que não deixam passar a vida.
A argamassa e os tijolos das paredes 
estão cobertos de tinta.
A madeira do chão está escondida
debaixo da alcatifa
e o verniz toma conta das portas.

As conversas são asas de borboleta 
que não sobem alto.
A hera cresce nas palmas das mãos
e enrola as nossas pernas
embrulhando-nos em celofane 
com um grande laço azul.

Somos um rebuçado longo e enjoativo.


quarta-feira, outubro 12, 2011



ESTRELAS AZUIS


Quero o teu abraço quente em torno do meu pescoço,
a tua voz a cantarolar baixinho ao meu ouvido 
fazendo-me rir com os arrepios;
quero aquele enorme universo de estrelas
como pano de fundo
quando apontas o teu dedo para a lua

com os teus lindos olhos de menina. 

quinta-feira, outubro 06, 2011

NATAL SEMPRE 

É o tempo de Natal que
lentamente chega
enfeitado
falso e colorido
vestindo a cidade.
É o Natal dos outros
das montras
das compras
que todos os anos,
e mais uma vez,
vem passar junto de nós.
O meu Natal
- e o teu-
não vivia de dias marcados
no frio dos calendários
nem se escondia
nos fios dourados,
nem nas folhas de azevinho
que acabam por secar.
No nosso Natal
havia todos os dias ramos
de trigo maduro
a cescer dentro de nós
e papoilas vermelhas
a iluminar-nos os olhos.
Neste tempo de Natal
- dos outros -
ofereço-te simplesmente
as minhas mãos 
para que contigo,
nesta terra que era a nossa,
irmos ao encontro do coração
de todos os homens que
em qualquer parte
tentam,
como nós,
navegar contra os rios da tristeza
em que nos querem afundar,
quebrar todos os muros
e ir contra todas as esquinas do desespero
em que às vezes
somos tentados
a perder-nos.
Fica o meu recado
para que nestas margens
em que encontramos
- e onde nos encontramos -
o nosso Natal
continue a gritar
em nós
todos os dias.

segunda-feira, outubro 03, 2011

SENTIMENTO 






Esta noite a "princesa-ervilha" não conseguiu dormir. 
Um aparente pequeno nada  estava entre os colchões.
Escondido, bem guardado dos olhares perspicazes de quem procurou.


Esta noite os meus gatos não resistiram e adormeceram embalados na minha insónia.