Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, outubro 16, 2013


ANJOS




“- Mas conta-me! Conta-me lá sem pensares que é sexta-feira... vá, não fiques assim chateado, já sabemos que estes dois dias são para a família.”- pediu Marília entrelaçando a sua mão na dele.

“- Sim, já me esquecia de te contar acerca do anjo que me guarda de noite. Não lhe conheço o nome, mas quero acreditar que seja o meu pai.”-respondeu Pedro olhando para a mão e segurando-a com carinho.
“- Ele também sempre teve a sua fé com o pai dele. Se eu pudesse, gostaria de um dia fazer o mesmo por quem sinto o que outrora o meu pai sentiu por mim.”- continuou.

Marília sentiu o arrepio do desconforto do ciúme. Sentia pena por não ser a mãe dos filhos dele e dos seus serem de outro alguém que não ele. Pressentiu que aquele sentimento de amor de Pedro para com os seus filhos nunca teria eco parecido nela ou nos seus. Pelos filhos Pedro tinha um amor distante de quezílias, paixões avassaladoras, de ciúmes ou de invejas.
Também ela sentia o mesmo pelos seus filhos. Pelos seus pais. E até por Ricardo, apesar de o trair com Pedro.
Que anjos a guardariam a ela durante a noite? Ficou calada durante instantes que pareciam não ter fim.

“- Em que pensas, meu amor?”- perguntou-lhe Pedro acariciando-lhe a face pálida.

“- ... Nisso que me contaste agora mesmo! Pensava que o amor é um sentimento tão forte que parece impossível perder-se com a chegada da morte. Chamamos-lhe sentimento mas podemos chamá-lo de tantas outras formas: energia, positividade, sensação, algo inexplicavelmente bom ou forte ou...sei lá eu!”.
Pedro olhava-a sem nada dizer, atento às suas palavras, apercebendo-se de um certo nervosismo.

“- Mas todas elas serão certamente meras tentativas humanas de transmitir algo importante entre todos nós e que faria perder o sentido da vida, e da vida entre as pessoas, se fosse comprovado extinguir-se com a morte. Acredito, não por me ter sido provado mas porque preciso de acreditar, que sentimentos tão fortes e genuínos como o amor entre algumas pessoas - incluindo o amor de pais pelos filhos e não só - perduram para além da morte da carne. E isso pode ser a essência e a origem daquilo a que chamamos anjos. Será?”- olhou para ele na esperança de uma resposta.

Pedro continuava calado e desviou os olhos fixando-os nas suas mãos entrelaçadas.

“- Quem melhor que um pai ou uma mãe muito queridos por nós, que tenham já partido, para nos embalar o sono, estar por cima do nosso ombro em algumas situações fazendo-nos companhia? Às vezes conseguimos senti-los tão bem que se estendessemos a nossa mão iríamos encontrar outra à nossa espera.”- continuou não desviando os olhos de Pedro.

“- Achas que é essa a ligação que conseguimos manter com os que amamos depois de termos partido desta vida? Parece ser tão pouco o podermos presenciá-los na sua vida terrena. Será o bastante e o possível para um anjo que já teve a sua caminhada concluída, que também já foi "velado" por um ou por outros anjos?”- questionava Pedro em voz alta como se Marília lhe pudesse responder com certezas.

“- Não sei, meu querido. Parece um refúgio este teu pensamento. Refúgio para algo que pode ter uma aparência tão brutal e árida como a morte, um corte tão abrupto e total com os nossos entes queridos que continuarão mortais após a nossa morte.”

Pedro pensava alto num exercício fluido perdendo a noção do tempo: “- Seria bom não termos de nos afastar eternamente de quem amamos. Seria bom reencontrarmos quem nos amou e a quem amámos, não achas Marília?”.

“- Pois era, sim. Não sei, não sei...O amor e o sofrimento devem ser as bitolas da nossa existência, suponho eu, que de ignorância estou cheia.”
Reparando nas horas despediram-se um do outro com um beijo precipitando-se para a rua que os esperava ventosa e fria. E cada um seguiu um sentido diferente.
Apesar da costumeira angústia da separação aos fins de semana não se viraram para trás tentando reter o outro por mais um pouco de tempo.
Aquele castigo, aquela separação forçada, aquelas duas famílias de permeio entre eles. Afinal também eles estavam no meio do amor.
O amor à família, aos filhos, ao conjugue maritalmente instituído.
Ambos sabiam que essa era uma das regras daquele amor que aceitavam e que sentiam há anos. Começara por ser um jogo convidativo ao romper da rotina.