Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, março 29, 2007

CADA VEZ MAIS IGUAL



Aproveitando o facto de estar em Lisboa agendara um encontro com Francisco, na editora que mantinha perto da Avenida de Berna, por causa da impressão do catálogo da retrospectiva da obra do Miguel. Seria melhor vermos tudo “in locco” apesar de todas as ferramentas tecnológicas de comunicação ao nosso alcance para podermos trabalhar à distância.
Confesso que cedi por ser um pretexto para rever um velho amigo, apesar do tempo disponível não ser muito para tantas andanças antes da cerimónia. Assim, seria um encontro breve antes da cerimónia religiosa do casamento de Ana pois, de seguida, partiria logo para Paris.
Entre a minha casa e a editora seriam uns quantos quarteirões, uns quinze minutos ou pouco mais.
Contrariamente ao habitual cheguei atrasada. Nunca foi e continua a não ser costume meu fazê-lo. Sou daquelas pessoas que ainda se preocupa em cumprir horários e obrigações, em ser responsável, enfim, tipo “dinossauro em vias de extinção”, como me apelidaram os filhos.
Mas esse nome assenta-me como uma luva quando chego a Portugal depois de uma longa temporada fora como tem acontecido nos últimos anos.
Ao chegar a Portugal percebo que pouco ou quase nada mudou desde que fui viver definitivamente para Paris há mais de dez anos.
Reparo que as pessoas que me rodeiam continuam preocupadas com aparências e conveniências, sem notarem o quanto estão ocas e afastadas da realidade e do mundo.
Comparativamente devo ser uma grande “chata”, pois “há que curtir sem stress!”...frases feitas que actualmente ouvimos um pouco por todo o lado, principalmente entre as pessoas mais jovens. A preocupação em se ser conscientemente respeitador dos outros, dos compromissos e dos sentimentos é, infelizmente, “démodée”.
Entristece-me esta inversão ou reconversão de valores, mas alimento a esperança na certeza que este ciclo também irá ter a sua reviravolta e tudo encontrará novamente o seu equilíbrio.
Mas, mesmo ao contrário do habitual, nessa manhã cheguei atrasada por causa de um homem.

Ao passar pelos jardins da Gulbenkian reparei na figura de um homem com um sobretudo escuro, comprido que enxugava os olhos com um lenço.
O lenço era tão branco que a figura do homem parecia um acessório.
Visivelmente comovido ou triste com algo pousava demoradamente o seu lenço nos olhos, parando de vez em quando para se encostar a um dos muros dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian.

Parei. Hesitei em me aproximar enquanto o olhava sem que me pudesse ver. Necessitaria de ajuda? Não me parecia que estivesse com alcool a mais ou qualquer outro tipo de droga. Não teria muita idade, talvez uns sessenta anos e não parecia padecer de nenhum problema físico a nível da locomoção. Mas acreditei, pelo que via, que não estivesse a sentir-se nada bem.
Correndo o risco de ser tratada com menos cortesia cheguei-me perto dele e perguntei:

“ - O senhor precisa de alguma coisa? Posso ajudar? Sente-se bem?”.
Destapando os olhos olhou-me como se mais nada se estivesse a passar à nossa volta: nem os carros freneticamente apitando para passarem pelo meio dos inúmeros buracos no alcatrão, nem as pessoas correndo apressando a própria morte.
Nada existia para aquele homem além da sua mágoa e do seu lenço branco.

“- Obrigado, menina. Mas não pode devolver-me a Flor...a minha mulher morreu... e eu não sei viver sem ela...nunca tinha imaginado ficar assim ...e agora não a tenho...”- balbuciou o senhor evidentemente emocionado e confuso.
Dei-lhe o braço e entrámos nos jardins que continuam minimamente arranjados e conservados, apesar de públicos.
Sentámo-nos num dos bancos de cimento e fui fazendo perguntas simples e objectivas para tentar ajudá-lo a referenciar-se e também pensando egoistamente como me iria desenvencilhar do assunto mantendo a consciência tranquila.
Família, filhos, amigos e morada foram os temas que tentava a todo o custo falar com ele.
Amor, solidão, vazio eram as repetidas respostas que obtinha.

Chorava como um menino e tinha idade para ser avô. A cabeça entre as mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos.
O sobretudo parecia enorme, como se não fosse dele.
Fiquei a seu lado, com o meu braço por cima dos seus ombros tentando dar-lhe algum conforto.
Tive tempo para reparar que vestia bem, com roupa cuidada, sapatos caros e um bom relógio...Ensinaste-me, há muito tempo, que para um homem estar elegante basta usar um bom relógio, um elegante par de sapatos e um cinto novo.
Lembrei-me das horas combinadas com o Francisco para a nossa conversa sobre o catálogo e passou-me pela cabeça a dúvida se teria feito bem em me ter metido naquele sarilho. Não conseguiria deixar uma pessoa sozinha naquele estado de desespero.

“- Venha, vamos tomar alguma coisa quente. Aqui não estamos confortáveis”- disse-lhe acabando por convencê-lo a levantar-se.
Na pastelaria pedi dois chás de camomila – receita milagrosa para quase todos os males, pois não faz bem nem faz mal, mas convence – e uma torrada com manteiga.
Visivelmente agradecido olhou-me directamente nos olhos, pela primeira vez ao longo daqueles minutos que já tinhamos passado juntos. Os seus olhos cinzentos tinham a profundidade de quem vive um grande sofrimento depois de perder a razão de viver, talvez a perda de um grande amor ou de uma grande companheira.

“- Oiça, não o conheço mas entendo que não está bem...que este foi um momento de fraqueza que tem de superar. Falou-me da Flor... a sua mulher? – comecei para tentar que o diálogo fluisse.

“- Sim, a Flor morreu há mais de uma semana e agora não sei o que fazer...as filhas já regressaram às suas vidas, aos empregos, aos netos e aos maridos delas...e eu continuo a acordar sem ela, a viver de recordações, de gestos lembrados, com os hábitos da casa que construímos...mas ela não está lá para tratar de mim, não fala comigo, não me ralha por fumar às escondidas...não sei o que faço quando tenho fome...como uma coisa ou outra sem sentido algum. É tudo tão estranho agora, não sei viver assim!” – finalmente verbalizando a sua dor.
Fiquei mais calma percebendo que aquele homem, de quem nunca soube o nome, estava simplesmente a passar por um desgosto. Não que um desgosto seja fácil ou simples de ultrapassar, mas fiquei satisfeita por não ter qualquer mal de saúde.

“- Tem telemóvel? Mostre-mo, por favor. Qual o nome de uma das suas filhas...a que está mais perto de si?” – perguntei já com o telemóvel na mão.
“- Olga...a Olga é a que sempre ficou mais connosco. É a mais parecida com a Florbela, a minha mulher...”- balbuciou comendo o resto da torrada.
“- Está bem, então vamos lá ligar para a Olga!”.

Mais tarde quando cheguei ao pé do Francisco pedi-lhe desculpa pelo atraso.
“- Estás muito mudada, Mariana!”- estranhou.
“- Enganas-te! Estou cada vez mais igual a mim mesma!” – respondi-lhe sorrindo ao sentir aquela calma que nos completa a alma num dia sem sol.

quinta-feira, março 08, 2007

PELO LADO DE DENTRO




Despedi-me dos mais chegados e apanhei um táxi de volta ao Areeiro.
O taxista era muito simpático. Pensei que estranhamente simpático até me aperceber que estava a estabelecer comparações como se estivesse em França. Que disparate!... Lá nunca um taxista conversaria tanto com um cliente e muito menos acerca do casamento do qual se apercebera que tinha saído. Excepto se fosse um taxista português radicado em França, claro. Nesse caso a “conversinha” correria durante toda a viagem ao aperceber-se que levava um cliente português. Saudades da terra, diriam algumas pessoas. Não, não é, é mesmo a formação que é diferente.



Uma das características da sociedade actual é a hipocrisia, especialmente nos subúrbios, onde as pessoas tentam parecer normais. Na cidade não tentamos fazer isso de forma tão acentuada. Assumimos simplesmente que a pessoa que está ao nosso lado é doida, por exemplo! O que já não acontece nas nossas aldeias ou pequenas localidades espalhadas pelo país.
Lembro-me daquele restaurantezinho ao pé da serra onde íamos sempre almoçar “fora de horas”. Lembras-te como nos olhavam com aqueles olhinhos pretos encobertos pelas suas pálpebras pouco rasgadas? As chinesas que serviam à mesa tinham sempre risinhos nervosos devido aos comentários já feitos com as colegas sobre nós. Porque iríamos aquelas horas? Sempre e com aquele ar feliz e descontraído como se a vida fosse nossa. Se fosse em qualquer restaurante no centro de Lisboa ou do Porto quem nos notaria? Ninguém. Nem a nós nem às horas a que almoçavamos, nem às mãos e pés entrelaçados.


Quando foste a primeira vez a Paris por causa de uma exposição das últimas que fizeste voltei áquele restaurante chinês nos subúrbios de Lisboa. Parece-me que nunca cheguei a contar-te...passou a oportunidade ou nem sequer me lembrei. Tivémos tantas coisas a resolver nessa altura que provavelmente nem me ocorreu mais este episódio.
O restaurante estava exactamente igual ao fim de tanto tempo. As cadeiras continuavam vestidas de vermelho com o assento já coçado de tanto uso.
A mesa onde costumávamos almoçar também lá estava, ao canto.
Almoçávamos sempre já tarde, sempre "fora de horas", depois de nos termos perdido em nós: nas nossas conversas, nas nossas histórias, nos nossos suores, nos nossos amores e nas confissões desejadas.
Chovia, embora o ar estivesse quente e abafado. Estavam cerca de vinte e quatro graus e em Agosto não seria suposto estar a chover tanto. Talvez uns chuviscos, mais nada.
Como me impressionaram sempre as cadeiras vestidas de vermelho! Com o tempo o tecido estava, de facto, mais gasto e menos piroso: a cor estava mais apagada, parecendo menos uma "casa de meninas".

Falei de sonhos comigo mesma enquanto engolia o chop-soy de galinha e o pato à Pequim. Comparei sentimentos, ilusões e o resultado de promessas desiludidas, não cumpridas. Ofensas, mágoas. Facturas pagas e por pagar, e a quem. Batalhas ganhas, confianças e esperanças mais fortes, tranquilidades e tomadas de consciência.
Estava mais rica relativamente a mim e à vida. Mais pobre em relação a esperanças e a ousadias. A golpes d’asa. Voaria certamente mais alto em pensamento mas teria passado a andar com os pés mais assentes na terra. E por tudo isto não existem culpas ou culpados. Existem responsáveis e responsabilidades. E aquela eterna separação a que estávamos condenados. A tua vida lá e a minha aqui em Portugal, sem capacidade para arranjar um trabalho em Paris.
Desde que ali começámos a almoçar também nós tínhamos mudado, mesmo sem termos notado. O teu perfume já não me trazia as mesmas sensações. Embora com o mesmo odor, as associações tinham passado a ser outras. Talvez mais complicadas, mais elaboradas. Mas com o mesmo desejo.
Mas passei a saber exactamente até onde podem ir essas sensações e desejo, e não passam para lá dessa linha traçada pela experiência que foi a nossa vida.

De regresso ao Areeiro recordo que no radio do táxi a cantora encanta: “I choose never to forget...”
Desde que cheguei a Lisboa reparei que quando paramos momentaneamente o carro, nas inúmeros e várias paragens a que nos obrigam os semáforos citadinos cada vez com pior sincronismo entre eles, os nossos vizinhos, igualmente momentâneos, olham-nos e invariavelmente olham para as nossas mãos procurando, penso eu, qualquer sinal de comprometimento. Se as feições agradam procuram seguidamente a situação emocional vivida. E os vários tipos de alianças usadas darão de imediato e ao primeiro olhar a resposta para uma possível aproximação.
Por outro lado, contrariando esta sistemática tentativa de passar o tempo talvez pelo infernal trânsito da cidade, pareceu-me que as pessoas andam muito adormecidas para que alguma faísca se solte fora dos locais habituais do chamado engate – discotecas, bares, clubes de danças latinas, aulas de aprendizagem zen, ginásios e outros que tais.
A dormência mental é tanta que quase que consegue ultrapassar a emocional.



Mas repara-se que a traição está na ordem do dia. “Paquerar”, expressão usadas não só pelos brasileiros residentes em Portugal, passou a ser normal através vidro lateral do carro ou num supermercado ou até numa paragem de autocarro. Num café ou num consultório médico aproveitando a fragilidade de cada um. É um não ser que não leva a lado algum mas que tenta preencher o vazio das vidas que são diariamente transportadas de um para outro lado dentro duma cidade como Lisboa. É como se todos os dias aqueles seres passassem de uma margem para outra de um rio que vai sempre correndo, que tem vida, cor e mágoas. Mas que eles nem a pontinha do dedo conseguem molhar. Limitam-se a ir de uma margem para a outra sem conseguirem quebrar as pontes e mergulharem nas profundezas das águas.

Quando era miúda fazia de conta que era um extraterrestre dentro de uma nave transformada virtualmente em automóvel, enquanto fazias essas viagens diárias. E ia adivinhando o que sentiam as pessoas que eu via apercebendo-me pelas expressões faciais, pelos olhos e pela sua postura física como viviam e com quem viviam essas as pessoas. Do que sentiam, do que amavam, do que morriam, do que não queriam e da sua falta de consciência em estarem vivas.

O taxista resmungava tão ruidosamente que me arrancou literalmente aos meus pensamentos. O que se passaria? Olhei pelo vidro do carro. Fiquei espantada pois ali ao pé, no passeio, um ser com duas pernas, dois braços e com uma cara no alto, dava pontapés fortíssimos e murros nos parquímetros em busca de moedas. Esta cidade funciona?
Mas não tinha sido este incidente que causara os arrufos do condutor. A fila de carros tinha parado para dar passagem a uma ambulância e, em seguida tinha havido um condutor que se atravessara no cruzamento.
A sirene da ambulância a tentar romper no meio dos automóveis era um safanão emocional depois de ter visto uma cerimónia tão bonita.
Pensei que talvez tivesse sido um acidente de viação. O tráfego é constantemente retardado pelos acidentes de viação que acontecem em intervalos praticamente regulares dificultando a chegada aos destinos dessas pessoas.
O carro parou tantas vezes que muitas delas foi ao pé de montras, cabeleireiros, cartazes de produtos de beleza, etc, trazendo as tentações desta sociedade de consumo que tenta encher-se de coisas para anular o vazio cultural e emocional de vivências sem vida.
Há cartazes colados pelas paredes dos prédios, espalhando pela cidade o apelo à ida aos teatros, espectáculos de bailado, música, folclore, eu sei lá. Os títulos são apelativos ao ponto de contarem histórias: “Estamos condenados um ao outro”, “A vida de Vincent Van Gogh”. Mas sei que as salas de teatro estão praticamente vazias o ano inteiro.
Oiço na rádio o anunciar de descontos num supermercado e nos programas para férias. Programas em cruzeiros e em praias, férias na neve ou sei lá que mais!
E vem-me à cabeça o nosso amor e as saudades que se agudizam sempre na altura das férias e das festas!



No último Natal que passámos juntos escrevi-te à laia de pedido:
“-Meu amor, quando pensares em fugir desta vida avisa-me, por favor! Não quero ficar à espera, quero que me leves contigo. Vestir-me-ei de azul, com flores na saia e peixinhos dourados nos cabelos. Os sapatos serão os rasos para poder correr. E nos meus braços levarei as mãos para podermos andar de mãos dadas”.

Acariaciaste-me a face com ternura e abanaste a cabeça.
“-Não querida, estou com os olhos bem despertos vendo a imagem dos nossos corpos como se exterior a nós fosse capaz de ficar. A ver. A ver-te amar, querida Mar. Não me procures se desaparecer primeiro que tu, prometes? As ausências e as demoras que vejo quando me olhas sem sossego são o fio que escreve o que se tiver de viver. Não me procures, então, sem que o tempo te tenha dado um sinal de mim. Se assim for talvez voltes a acontecer e a tua boca abrir-se-á num novo sorriso de chegada, os teus olhos brilharão de novo e o teu calor envolverá os murmúrios que vivem no interior de alguém.”

Ambos sabíamos que estavas condenado e que a doença não te daria tréguas a partir de determinada altura que não sabíamos quando chegaria. Não falávamos disso nem de futuros.

Como me dizias sempre: “- Olha, sabes que mais?...Um copo antes e um café depois!”








quarta-feira, março 07, 2007

O MEU TRAVESSÃO NOS TEUS CABELOS



Há uns meses atrás a minha filha Mariana telefonara-me para Paris. A voz dela continuava parecidíssima com a minha. Quantas vezes ao longo dos anos confundiram telefonicamente as nossas vozes. E com o mesmo nome, as confusões ainda aumentavam mais criando, por vezes, situações caricatas.
Telefonara-me perguntando pelo meu travessão de "marcassites". A Ana queria usá-lo para prender o véu de noiva.

“- Claro que sim! Claro que gostaria muito que o usasse...”- fiquei contente com o pedido.

“-Está aí em Lisboa, no Areeiro... no guarda-jóias dentro do armário do meu quarto. Podes ir lá buscá-lo para verem se lhe fica bem.... A Ana lembra-se assim tão bem dele? Poucas vezes o usei nos últimos anos”- continuámos a conversa telefónica.

Quando pousei o auscultador infalivelmente recordei-me do travessão e de como mo deras. Tinha sido há muitos anos, meses depois de regressarmos da primeira viagem que fizémos a Madrid.

“ –Afinal o que representei para ti e para a tua vida? No início pensavas que íamos ficar juntos? Que o nosso caso duraria tantos anos?- perguntavas-me ao ouvido.

“-Sempre foste uma provocação para mim! Nem sei bem dizer o que representavas para mim quando nos conhecemos”- disse soltando uma gargalhada.

“-Provocação? Como assim? Explica melhor”- pediste.

“-Sabes bem que fiquei perturbada quando te vi e quando ia às tuas aulas ficava a olhar para ti de soslaio para ninguém notar...nem tu! - recordei meigamente.

“-Provocação ou tentação?”- provocaste-me novamente.

“- Hum... deixei-me levar até onde o meu coração me mandou... e a tentação me impeliu! E fui sempre dar até ti. Foste o que posso chamar de karma positivo!”- foi a minha vez de te provocar.

“- Quando tocavas a campainha do portão ia sempre ver-te da varanda, sabias? Subias a dois e dois os degraus da escada de tão apressada que estavas! Depois ia por-me à porta, à tua espera, como se ainda não te tivesse visto. Vinhas sempre afogueada e cheia de vontade de mim!”- lembraste-me.

“-Sim, meu amor, começaste por ser uma fantasia ou um sonho. E tudo ficou tão importante entre nós que tornaste-te numa paixão sem a qual era impossível viver. Significaste o meu e o teu amor juntos, fizeste vir ao de cima o que eu tinha de melhor”.

“- Queres casar comigo, princesa?”- perguntaste não esperando pela resposta para me ofereceres um travessão lindíssimo em “marcassites”.

“- Nenhuma mulher apaixonada resiste ao pedido de casamento do homem que ama!”- apanhei os cabelos com ambas as mãos e coloquei o travessão.

“-Mas tu és diferente. Nunca se sabe o que dirás, o que farás...és uma caixinha de surpresas. Também por isso te amo, Mar...minha pequena Mariana”- disseste emocionado.

“- No amor e no amar sou igual a qualquer mulher apaixonada!”.

segunda-feira, março 05, 2007

MARIA



Ainda era cedo para comer algo mais substancial. Mas como sabia que a cerimónia iria demorar saí da igreja procurando uma pastelaria.
Parou um táxi bem junto da berma do passeio onde estava. Dei um passo atrás assustando-me com tamanha falta de cuidado.

A porta abriu-se e reconheci Maria, uma das minhas filhas "emprestadas". Como lhe chamava, uma “filha do coração”.

Estava uma mulher...ah, se tu ainda a pudesses ver estarias orgulhoso como pai. Abraçou-me dizendo-me que as saudades tuas eram imensas e que eu devia pensar em regressar definitivamente a Portugal. Que já não fazia sentido morar em Paris sem ti.
Vinha com a sua prima Madalena com quem pouco privei por causa daquele teu amuo infinito com a tua irmã. Também estava muito bonita mas sempre muito mais reservada que a prima.
Perguntei à Maria como estava, pela mãe e pelo resto da família.
Confessou que nunca mais se tornara a dar com a mãe desde o incidente com o Afonso, aquele namorado de quem tanto tinha gostado e sobre o qual tanto a avisámos.
De facto, aquele caso com a mãe dela e com o rapaz tinha sido perfeitamente fora de qualquer contexto normal de regras de um relacionamento familiar.
Falaste-me pouco da tua ex-mulher, da Rosa. A tua mãe, a "Tia" Matilde, é que passava horas à conversa comigo e foi-me contando isto e mais aquilo preocupada com a neta.

Naquele dia Maria telefonou-nos e de tanto soluçar nem entendias o que dizia. Estávamos ainda em Lisboa e foi ter connosco. O relacionamento entre elas ficou lamentavelmente e definitivamente cortado.
Contrariando o que aconselhaste encontrei-me com a Rosa para tentar entender o que se passara e tentar reconciliá-las. Mas foi em vão. Tinhas razão.


“Rosa olhou uma vez mais para a filha e tentou afastar a sombra daquele pensamento que, a pouco e pouco, ia tomando forma e lhe ia corrompendo o pouco sossego em que vivia.
Apesar de não ter sido desejada ou, sequer, amada por ela, inevitaveelmente Maria tornara-se numa bonita rapariga de dezoito anos acentuando cada vez mais os cinquenta e dois anos de sua mãe.
Uma relação estranha esta, entre a Rosa e Maria: Rosa uma mãe biológica mas desde sempre ausente da vida da filha por mais que socialmente os esforços tivessem sido para que as duas crescessem juntas aprendendo o papel de cada uma neste tipo de relação parental.
Mas tudo isto se tornou impossível.
Rosa lembrou-se o que sentiu quando, ao chegar a casa após a primeira consulta com a bébé, compreendeu o quanto passaria a estar presa em casa, a horários, a fraldas e a mamadas. Decididamente achava-se demasiadamente importante para se desperdiçar com o papel de mãe. Certamente que Miguel teria dinheiro para pagar uma ama à filha. E assim foi feito.
Apesar disso, passados poucos anos após o nascimento Maria seria entregue ao pai pelo Tribunal de Família e Menores. No divórcio Rosa abdicaria de ter a filha à sua guarda, continuando a achar-se demasiadamente importante e com uma vida à frente para ser vivida e não para desperdiçar tempo e juventude a perder noites com dores de ouvidos e dores de barriga infantis.

Passados dezoito anos Rosa olha para a filha com um imenso amargo de boca tentando recuperar a vida que, afinal, não conseguiu viver. Onde estava a sua juventude? De que lhe serviu a sua liberdade? A sua carreira e o seu sucesso ...Sucesso? Mas qual sucesso? Em quê?
Por mais operações de estética, lipos, massagens, emagrecimentos excessivos, não consegue voltar a ter vinte ou trinta anos. E não entende porquê!
Mas repara no Afonso, o actual namorado da filha, uns anos mais velho que a miúda.

E como é agradável quando tomam café juntos a pretexto de conversarem acerca da miúda!... Foi assim que Afonso se tornou o seu confidente.

Naquela tarde de Agosto Rosa desabafou, choramingando, o quanto se sentia triste com o seu namorado. Que ele era “um este e um aquele”, que ele não a merecia, que ele nunca se tinha divorciado da mulher apesar das promessas, o quanto se sentia só por ele estar no México de férias...Afonso era um ótimo ouvinte apesar dos seus vinte e poucos anos.
Rosa notava como Afonso lhe olhava para o colo, discretamente deixado à vista debaixo de botões desabotoados da camisa de tecido enrugado.

E daquela vez que o levou à estação?! Lembra-se bem daquela festa que ele lhe fez na cara para que não pensasse mais no namorado comprometido.
Rosa entendeu o quanto invejava a mocidade da filha, a vida que ela tinha pela frente e não aceitou, mais uma vez, que a dela lhe tivesse passado ao lado.
Rapidamente pegou no telemóvel e ligou para o rapaz.
Perguntou-lhe prontamente se queria sair com ela. Disse que então se encontrariam no "deck", ao pé do parque. E assim foi.
Após várias bebidas e algumas paragens em discotecas de Lisboa, Rosa levou Afonso para casa alegando incapacidade para conduzir. Já no sofá da sala os beijos sucediam-se aos afagos e ao desejo carnal — ela de carne jovem numa tentativa de recuperar a sua, ele na expectativa da descoberta de alguém com mais experiência.
Afinal nem um sentimento de culpa a assolava. Afinal tudo se tinha passado entre eles e as quatro paredes da sala: como se nem ela fosse mãe nem ele o namorado da filha... até porque ela não era mãe.
Perverso? Não, que disparate! Afinal não passava de mais um jogo das inúmeras manipulações feitas ao longo dos anos com todas as pessoas que, de uma ou de outra forma, lhe poderiam ter servido para alguma coisa.
E, afinal, não tinha cinquenta anos! Tinha a idade que imaginava quando usava exactamente os mesmos soutiens que a filha, os mesmos tops, os mesmos jeans descaidíssimos deixando antecipar desejos de putos rebeldes e inexperientes.

Afinal Maria não lhe fazia sombra. Bastava que manipulasse aquele namoro entre ela e o Afonso condenando-o ou não ao fracasso conforme os seus caprichos dançarinos à mesa de um qualquer café. O rapaz era tão fácil de manipular quão sexualmente inexperiente.

Maria esperava ansiosamente pelo namorado. Estava calor, não adivinhava vento e seria um óptimo dia para reatarem após aquele amuo de namorados. Esperou um telefonema que, finalmente viera após o envio de um seu meigo sms no qual o convidava a estar com ela.
Finalmente apareceu com ar despreocupado e triunfante.

"- Como estás? Tudo bem?" — perguntou-lhe a rapariga.
"- Sim, Bé, tudo bem. E contigo?" — respondeu-lhe em ar de pergunta.
"- Tá-se! A minha mãe telefonou-me e disse que iríamos sair juntos. Mandou-te um beijinho! Pareceu-me bem mais bem humorada do que na terça-feira quando o namorado foi para o México...sabes, aquela história de ser casado..." — confessou Maria.
"- Ah, sim, tá-se! Não te preocupes, passa-lhe. É tudo uma questão de falta de sexo!- Afonso respondeu de forma despreocupada".

Semanas mais tarde o inevitável aconteceu quando Maria regressou a casa da mãe muito mais cedo do que o combinado para passarem juntas o fim-de-semana. Meteu a chave à porta e reparou que a tranca não estava posta.”

sexta-feira, março 02, 2007



VOAR SEM ASAS











Os noivos trocavam as alianças. Olhei para a minha mão esquerda e ainda lá estava a que me tinhas dado no almoço no Pompidou. Quando pediste que casasse contigo e recusei porque já estava casada contigo há muito tempo. Entendo que me querias agradar. Afinal durante alguns anos sugeri-te que nos casássemos. Coisas de mulheres! Mas já nos tínhamos desposado tantas vezes com cerimónias mais bonitas que qualquer casamento que tivesse visto.

Em vão os meus olhos procuraram-te por toda a igreja...talvez atrás daquela coluna ou lá ao fundo, atrás de toda a gente como era teu costume.
Procurei um sinal de ti. Mas não te encontrei. Em vão, tentei recuperar a tua vida, a nossa vida. Já tinhas partido irremediavelmente há muito.
De nada valeria tentar que visses pelos meus olhos a Ana vestida de noiva e toda a minha vida espelhada nas pessoas que ali chegaram a testemunhar a sua felicidade.
Não conseguirias ver, mesmo através dos meus terrenos olhos.
Estarias ali ? Nunca o soube.

Provavelmente sim. Ou talvez não. Talvez no teu atelier, na nossa casa em Paris. Sim, se estivesses estarias certamente lá e verias a minha Ana vestida de noiva.
Lembrei-me do namoro dos teus pássaros, dos croissants com manteiga, do mar e tive uma terrível saudade de amanhecer em Paris.
Perseguindo-te abri as asas das mãos para poder fugir. Rasguei os lábios com um sorriso ganhando a luz de uma nova alvorada. Vesti a ternura arrumada, afugentando as sombras do passado. Descobri que a memória é uma ficção e o passado uma espécie de sonho, que só nos sonha tanto quanto o sonharmos.
E que nós dois só continuávamos a existir por termos sonhado o mesmo sonho ou o mesmo sonho ter-nos sonhado a ambos.
Abri as asas das mãos e fugi.