Perdeste-me
e nem notei.
Naquela manhã, ao acordar, essa realidade fez-se minha companheira de viagem
Há quanto tempo saberias e não me disseste?
Ou ainda não acordaste para uma manhã como esta?
Como alguém que se esquece da carteira no assento do banco da estação
perdeste-me de vista sem notares.
Tinhas-me já perdido
e não saberias
e eu já tinha deixado que me perdesses e não te avisei?
Também te perdi pelo facto de me teres perdido sem sequer o teres notado.
Terá sido nessa manhã ou na semana passada? Num Verão ou nos Natais? Nos dias festivos ou no dia a dia que corre num leito de solidão?
Foi em bocadinhos,
bocadinhos colados nessa manhã, na semana passada, no Verão e no Natal.
Foi quando eu já estava só
e percebi que os anos tinham passado
e que a história se tornava futuro.
Foi quando deixei de ser protagonista do romance que guardavas na cabeceira da cama
e passei a encenadora, a actriz secundária ou a cenógrafa,
tornando-me transparente,
translúcida,
apêndice inalterável que estaria sempre lá
até que alguma cirurgia violenta o arrancasse do seu lugar.
Lutadora, presente ou ausente
mas alguém que entende o que mais ninguém sabe, o que ninguém mais quer realmente saber.
Alguém que sempre se atreveu a viver só.
Senti-me verdadeiramente só
somente quando, mesmo acompanhada de quem amava,
ninguém notou essa solidão.
Era tão grande que lá coube a minha tomada de consciência.
Perdeste-me
nos momentos em que não notaste que estava lá
no passar dos dias normais sem acontecimentos trágicos ou fulgurantemente determináveis
Nos outros sei que sentiste as nossas mãos gastando-se.
Perdemo-nos
Quando nada fizémos para reforçar as linhas que cosiam um mundo com costuras cada vez mais ténues, como as dobras das bainhas dos lençóis usados e dos bordados que se tornam quase invisíveis.
Linhas e alinhavos sem projecto que os prendesse com pontos mais fortes e mais bonitos, talvez como os do ponto pé-de flor, de nome tão frágil mas forte e de grande beleza: levamos a agulha um ponto à frente para logo voltarmos atrás para o reforçar.
Perdeste-me e reparaste
quando me disseste equivocada porque
a tua não seria também a minha casa
para a qual buscámos tábuas, parafusos e esperas,
muitas esperas.
Perdeste-me
e nem notei.