Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

domingo, março 27, 2011


AFASTANDO PENSAMENTOS


Afasto pensamentos,

sigo em frente virando as costas à memória

e aos lugares,

memória simbiótica com os sentimentos que não deixa esquecer o que queremos

ou não queremos deixar ir.

À mesa da esplanada, no recanto procurado, nos caminhos conhecidos

e nos trilhos descobertos.

A árvore permanece lá, a sala de jantar, os riscos,

a memória dos cheiros: a terra, a flores, a chuva

e ao sol apimentado do sal do mar.

Revolvo-me por caminhos de menos dor, menos mágoa

e encontro lugares onde levei o meu amor,

onde encontrei o que não procurava,

onde tomei decisões, onde me descobri

onde mudei o rumo da vida.

Lugares onde me levava a mim com amor dentro.


segunda-feira, março 21, 2011



DIA MUNDIAL DA POESIA - 20 de Março



A poesia não tem dia nem hora.
Ela é. Porque se sente, se diz, se escreve e se vomita.

Livros de poesia, cadernos ou pedaços de suporte onde a escrevemos são sagradas construções : espaços de paixão. Verbos saídos das entranhas, palavras subtraídas aos sentimentos guardados quantas vezes inconscientes; mas sempre sentidos inquietante e incomodamente vividos.



"As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não."

Manuel Bandeira,in "Arte de Amar"




domingo, março 13, 2011

CARTAS I

OS TEUS CABELOS NA BANHEIRA ?



Querida Ana,

Escrevo-te mais uma vez esta semana. Receberás duas cartas minhas nos próximos dias.
Escrever é uma tentativa de te sentir mais próxima, uma expectativa de poder sentir que não te foste embora, que não moras tão longe e não podemos estar juntas todos os dias.

Ontem, enquanto tomava duche, surpreendi-me ao ver na banheira cabelos teus espalhados naquela superfície branca e quase espelhada. Exactamente como antigamente depois de estares horas infindáveis na casa de banho.
Claro que senti o coração estremecer. O meu pensamento voou e o meu raciocínio trouxe-me de volta.
Não, não podiam ser os teus cabelos compridos, escuros, encaracolados que tantas vezes entupiram os canos da banheira!

Saí do duche e sorri agradada pelas lembranças desses tempos em que te via crescer todos os dias. E igualmente todos os dias aprendia a ser mãe.

Mas então e os cabelos que estavam na banheira?...ah, espera lá, sou mesmo tonta...já sei!
O teu irmão cresceu e já namora. E ela tem os cabelos tão parecidos com os teus!...E ontem estive fora de casa praticamente o dia todo...!

Sentei-me na borda da banheira e achei graça ao tempo, aos dias, à vida, a ti, ao teu irmão, a mim. Ri-me de tudo isso e ganhei um dia ainda mais feliz.

Bom, tudo isto para te dizer que o teu irmão mais novo deixou-se das curtes e já namora com uma jovem de cabelos compridos, escuros e encaracolados! Imagina que não tinha ainda reparado como os cabelos dela eram parecidos com os teus.

Cortaste novamente o cabelo? Da última vez estavas muito engraçada com esse corte moderno, assimétrico, mais comprido à frente do que atrás.

O resto está tudo bem, não? Se for necessário liga-me para o telemóvel pois em casa vou estando cada vez menos...o que o teu irmão agradecerá!

Beijos

Mãe

quinta-feira, março 10, 2011

UMA HISTÓRIA GUARDADA



Perdeste-me

e nem notei.

Naquela manhã, ao acordar, essa realidade fez-se minha companheira de viagem

Há quanto tempo saberias e não me disseste?

Ou ainda não acordaste para uma manhã como esta?

Como alguém que se esquece da carteira no assento do banco da estação

perdeste-me de vista sem notares.

Tinhas-me já perdido

e não saberias

e eu já tinha deixado que me perdesses e não te avisei?

Também te perdi pelo facto de me teres perdido sem sequer o teres notado.

Terá sido nessa manhã ou na semana passada? Num Verão ou nos Natais? Nos dias festivos ou no dia a dia que corre num leito de solidão?

Foi em bocadinhos,

bocadinhos colados nessa manhã, na semana passada, no Verão e no Natal.

Foi quando eu já estava só

e percebi que os anos tinham passado

e que a história se tornava futuro.

Foi quando deixei de ser protagonista do romance que guardavas na cabeceira da cama

e passei a encenadora, a actriz secundária ou a cenógrafa,

tornando-me transparente,

translúcida,

apêndice inalterável que estaria sempre lá

até que alguma cirurgia violenta o arrancasse do seu lugar.

Lutadora, presente ou ausente

mas alguém que entende o que mais ninguém sabe, o que ninguém mais quer realmente saber.

Alguém que sempre se atreveu a viver só.

Senti-me verdadeiramente só

somente quando, mesmo acompanhada de quem amava,

ninguém notou essa solidão.

Era tão grande que lá coube a minha tomada de consciência.


Perdeste-me

nos momentos em que não notaste que estava lá

no passar dos dias normais sem acontecimentos trágicos ou fulgurantemente determináveis

Nos outros sei que sentiste as nossas mãos gastando-se.


Perdemo-nos

Quando nada fizémos para reforçar as linhas que cosiam um mundo com costuras cada vez mais ténues, como as dobras das bainhas dos lençóis usados e dos bordados que se tornam quase invisíveis.

Linhas e alinhavos sem projecto que os prendesse com pontos mais fortes e mais bonitos, talvez como os do ponto pé-de flor, de nome tão frágil mas forte e de grande beleza: levamos a agulha um ponto à frente para logo voltarmos atrás para o reforçar.


Perdeste-me e reparaste

quando me disseste equivocada porque

a tua não seria também a minha casa

para a qual buscámos tábuas, parafusos e esperas,

muitas esperas.


Perdeste-me

e nem notei.