Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

METAMORFOSES

Finalmente, ontem fui ao médico!


Durante meses empurrei com a barriga a consciência de ter de ir fazer a revisão, como os automóveis. Desmarquei consultas arranjando para mim própria, e para as assistente do médico, desculpas esfarrapadas...mas ontem teve que ser.
Está à vista que não gosto muito dessa classe ao pé de mim, não que não sejam boas pessoas (alguns!) e muito úteis nas aflições, mas sempre é melhor vê-los por fora da redoma.

Sei que é uma espécie de negação inconsciente da minha parte à aceitação de doenças e maleitas.
Mas como continuava a ter alguns achaques e dorzitas por aqui e por ali, lá fui ao Senhor Doutor da Medicina depois de mais um dia de trabalho estafante.

Entrei no gabinete do médico por volta das oito da noite e saí às dez e meia! Não, não estivemos a jogar xadrez, mas até parece!
Entrei com suspeitas e saí assustada!.... E com exames e análises para fazer, claro está. Quando me apanha lá não perdoa, sabendo que só me voltará a ver passado um ou dois anos, se tudo correr bem!

Mediu-me a tensão arterial, verificou a pulsação, apalpou-me a barriga e auscultou-me cuidadosamente.
Ordenou-me que subisse para a balança, que fechasse os olhos e tocasse com a ponta do dedo na ponta do nariz. Martelou-me as articulações, revisitou a C4 e a C5 e pediu-me que fosse mal educada para ver o rosado da mucosa na cavidade bocal.

Depois de vestir e despir a camisa, calças e casaco várias vezes, à medida que o Sr. Dr. se lembrava disto e de mais aquilo, claro que saí de lá constipada.

Enquanto passava as receitas e os pedidos de análises e exames foi dizendo que eu tinha de mudar. Mudar?! Mas mudar o quê?

Mudar-me de casa, possivelmente, pois a actual tem imensa humidade e o senhorio não faz obras de isolamento...Não, não era mudança de casa ao que se referia.

Disse-me que tenho de mudar a minha forma de me dar aos outros. A minha maneira de estar na vida. Tenho de pensar primeiro em mim e só depois nas outras pessoas e nos seus problemas e anseios. Tenho de entender que também eu sou importante e merecedora do que anseio. Ponto final.

Que sempre existiram palermas e estúpidos. Não os há mais agora do que antigamente. A grande diferença está em que agora é-lhes permitido invadir certos terrenos e falarem alto para se fazerem ouvir. E juntam-se exactamente pelo mesmo motivo: juntos elogiam-se uns aos outros convencendo-se a eles mesmos e querendo convercer terceiros que estão certos e que os limites do certo e do errado, do correcto e do incorrecto não são o que realmente são e sempre foram.

O certo e o errado continuam a existir por mais que queiram fazer-nos crer que as barreiras e os limites estão mudados.

Mas que o principal, tornava a dizer-me, era tornar-me menos tolerante com os outros e com os problemas da vida deles; não continuar com a tendência de sempre minorar os meus problemas adaptando-me às situações existentes na minha vida.

Que amar os outros não pode ser tanto nem com tamanha intensidade! A distância tem de ser maior para que se veja melhor o interior de quem é olhado. Para que não sofra nos orgãos o que a minha alma sofre.


Agora? Com mais de quarenta anos de vida é que vou mudar? Na minha perspectiva é um autêntico disparate, pois o que fazemos desde que nascemos até uma certa idade é mudar, aprendendo o desconhecido, usando a inteligência, a intuição, o instinto de sobrevivência.
Depois apreendemos o que aprendemos e formamo-nos mal ou bem, conforme os casos e os pontos de vista...e as companhias!
E a partir de certa altura misturamos tudo isto, baralhamos as cartas e voltamos a dá-las de forma mais coerente relativamente a nós e à nossa maneira de ver o mundo e os outros.

E o jogo recomeça variadíssimas vezes, mas com cartas muito idênticas, com naipes sempre iguais ou muito semelhantes...e as estratégias deixam de existir para darem lugar à veracidade do jogador.
A partir de certa idade, leia-se contagem de tempo, o jogo passa a não ser jogo.

Passamos a ser nós com muito mais material de combustão do que à partida da prova. E todo esse material é pensado e repensado e voltará a ser repassado tantas vezes quanto maior for a nossa capacidade de pensar, de ver, de ouvir, de sentir, de sermos honestos connosco e de estarmos vivos.

Então, por que razão tenho de modificar a minha forma de estar e ser se já é o que faço à medida que vivo?

Pois, pois, o que o Sr.Dr. receitou foi que eu mude radicalmente a minha maneira de amar!

Explicou-me melhor:

Amar os outros não significa pensar neles e depois em mim. Não significa ser tolerante com os outros pensando que o que eles querem e sentem é tão importante quanto o que eu quero e sinto. Não significa virar-me para entender os outros sem que eles o façam em relação a mim.

Fiquei pasmada. Afinal o que ando eu cá a fazer? Pensava eu que tinha evoluído como gente e pessoa conforme os anos e a vida tinha passado por mim.

Não, o Sr.DR. não pode ter razão, pensei e repensei. O mal deste mundo é, exactamente as pessoas não olharem sequer para o vizinho do lado, não pensarem em mais ninguém além de si mesmos.

Pois é, mas para o meu mal o único remédio é esse. Defender-me e repensar, mais uma vez, a aprendizagem do jogo.

Sinto-me autêntica rã nestas metamorfoses constantes ao longo de mais de quarenta anos!

Estarei em que estado? Girino, possivelmente. Certamente que ainda nem passei disso!

Vamos ver o que dizem as análises e os exames. Se tudo estiver bem com a saúde voltarei a discutir o assunto com o Sr. Dr.. Desta vez com o tabuleiro de xadrez à frente.

RECOMEÇA...




Recomeça...

Se puderes,

Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro,

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo

Ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar

E vendo,

Acordado,

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças.


Miguel Torga

sábado, fevereiro 18, 2006

DESERTO AZUL



Fica noite,
à espera da carícia da minha voz
na tua nuca

E as pegadas dos teus pés
Estão erradas...nas calçadas por onde caminho.

Passas a ser o azul-água
no fundo maior dos meus olhos.

E eu passo a ser o teu sangue
vermelho-seco do deserto.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

INDIAN ROSE


Cada um de nós é um ser sozinho transportando dentro de si o seu próprio vazio...
e o susto de viver sem saber por onde (re) começar.


VELATURAS






Pintas este corpo de baixo para cima, como se o dia e a vida disso dependessem.
Depois regressas próximo a cada curva, a cada reentrância,
escondido.
Vida velada, êxtase cheio de saudades dos sonhos inventados.
A respiração dentro e fora de ti, dentro de mim.
Quente...quase lá.
E as cores esbantem as noites, pintam os dias e as verdades
com pinceladas macias molhadas de ti.
Nós dois molhados só de ti e das cores que conheces.

Mas as minhas cores também existem.

FLUTUANDO






Pena não ter mãos nem braços
para estender o meu corpo
e a minha alma
fazendo uma ponte
entre o teu vazio e tu.

Pena ser pena,
ser só mais um espaço
ocupado de sonhos.

Ser feita um vento ténue
ou um turbilhão vermelho
que nem sabes se viste.

Pena este momento
não ser contigo aqui
ao lado
num vazio quente e palpável
que quase pudesse ver
o teu cheiro de solidão.

E fazê-lo meu por um só agora.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006


VIDAS, CAMINHOS, DESTINO







Mariana abriu a sua mailbox.
Ele escrevera-lhe mais uma vez. Era um mail cheio de dúvidas temperado com desamor.
Mariana leu-o ainda mais uma vez.
Pegou na gata e levou-a consigo para o sofá, aninhando-a num abraço.
Olhava o tecto da sala à procura das figuras imaginárias que via nos tectos da sua infância. Mas nada. Nem coelhos, nem cães, nem cabeças de cavalos... nada disso. Somente o pulsar do seu coração sentido violentamente e a projecção do seu medo no tecto.

Já tinha sofrido tantas vezes...afinal, de todas as vezes em que acreditara!
O gato saltou-lhe do colo nesse mesmo instante. Mariana começou a escrever, a escrever-lhe. Mais uma vez iria ser sincera e dir-lhe-ia dos seus próprios medos, da partilha das suas dúvidas e de como isso podia ser impeditivo de continuarem a construir os seus castelos.
Mas bem guardado no seu peito havia a esperança de que ele tivesse solução para aquela doença que os minava: o não conseguir acreditar outra vez, tão grande era a dor, e tantas as dificuldades à concretização prática daquela relação.
Será que teria? Será que ele conseguia acreditar outra vez?

Sabia que não podia continuar a viver aquele " sem esperança" muito mais tempo, como se de um destino se tratasse. Que tinha de se enlutar e tentar viver recomeçar se não houvesse saída alguma. Entenderia que ambos deviam buscar a felicidade, o amor, a tranquilidade, a paixão. E o nome do outro passaria a ser a lembrança de alguém que deixou marcas. Sabia que teria de esquecer e esse processo também se fazia conscientemente. O tempo é o grande curador desses males, mas a sua postura também contaria e faria a diferença.

Continuava a escrever-lhe, de um folgo só:


"
Infelizmente sei bem demais do que falas, meu amor.
Tão bem que o peso da incapacidade força-me os ombros e encosto a face às minhas mãos desalentadas.

Também não conseguir acreditar, confiar.
Reviver mais uma das muitas vezes que já sentimos que era a última vez... que seríamos magoados, que as nossas esperanças caíriam por terra, que não seríamos amados como pensávamos merecer e que não mais o outro nos faria sentir tão perdidos.

Não conseguir tornar a creditar, meu amor, é certamente, o grande impedimento da realização de tanta coisa nesta vida.

Acreditar é essencial, sim. Também essencial à vida, já que o amor e a vida são a mesma coisa.
E acreditar que se pode acreditar, também.
Acreditar que já não se consegue acreditar outra vez é a realidade com que ambos nos debatemos neste momento, apesar dos sentimentos que ainda teimam em pulsar dentro da alma.

A vida deixou correr o tempo na nossa relação e estamos agora confrontados com uma realidade que só nos põe dois caminhos à frente. A escolha não tem muitas variáveis. Somente duas. Ou conseguimos voltar a acreditar ou não.

E não se trata de escolher. Trata-se de sentir. E o que ambos sentimos agora é dor. De mágoa, de solidão, de injustiça, de incapacidade, de desalento... De não conseguir acreditar. Da incapacidade de sonhar.

E um sentir não se constrói, não se arranja, não se compra, não se vende nem se faz de conta. E também não se remenda. Os pontos esgaçam sempre que se remendam sentimentos.


Resgataste de mim os teus pertences, arrancando-me a última esperança a que me agarrava quando o desânimo entrava.
Não consigo resgatar tão facilmente os meus de ti.
Só sei que não quero sofrer outra e outra vez.
Quero amar-te mas com um amor feliz, de quem confia que o outro quer, de facto, o melhor para nós, que o outro olha e zela por nós, que o outro nos ama acima de tudo e “até debaixo de água”.

Como se volta a acreditar, meu amor? Infelizmente eu não sei.
Só o destino traçará as linhas da direcção dos meus passos. Adeus, espero-te na volta do correio...Antigamente esperar-te-ia na esquina.

Um beijo
MariaAna”

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

E, DE MANSINHO...




Mariana abriu o seu notebook de capa castanha e escreveu-lhe:
"- Quando pensares em fugir, avisa-me, por favor! Não quero ficar à tua espera, quero que me leves contigo!".
Rasgou a folha e escondeu-a debaixo da outra almofada da cama desalinhada.
" Vestir-me-ei de azul, com flores na saia e peixinhos dourados nos cabelos. Os sapatos serão os rasos para poder correr. E nos meus braços levarei as mãos para podermos andar de mãos dadas.
Mariana esperou até que adormeceu já sem a noite.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

(RE)COMEÇO






Hoje
abri as asas das mãos para poder fugir.
Rasguei os lábios com um sorriso ganhando a luz de uma nova alvorada.
Vesti a ternura arrumada, afugentando as sombras do passado.
Hoje
descobri que a memória é uma ficção e o passado uma espécie de sonho, que só nos sonha tanto quanto o sonharmos.

Podemos os dois sonharmos o mesmo sonho,
ou o mesmo sonho sonhar-nos a ambos?

Hoje abri as asas das mãos e fugi.

sábado, fevereiro 04, 2006

VIUVEZ FORÇADA





Viúva de verdade e confiança Mariana cobriu-se de negro. Enviuvou(-se) e partiu.

A dor do engano era tanto maior quanto maior a confiança depositada em quem a enganara.

O engano é arma tão negra que torna uma mulher em viúva sem retorno.

O engano não tem idade. As rugas são sempre vincadas e fundas. É sempre igual a dor e a consequência. O engano empobrece e escurece. Quer tenha sido há cinco anos, há três meses ou ontem.

Mariana partiu à procura da Wendy.

LUVAS E PONTES




Alguém que conheci escreveu:
“Muitas vezes só se reconhece a falta de estrada pela falta da ponte.”
Acrescento:
O Inverno tem sido rigoroso. Está muito frio. As mãos só fazem sentido com luvas, assim como as estradas só fazem sentido com a existência das pontes.
Sem pontes podem existir estradas, mas as margens onde acabam nunca se juntam,
nunca mais se encontrarão.

E as mãos despidas esfriarão com o rigor do Inverno.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006



TOCANDO OS PÉS





Todas nós já fomos donzelas, fadas e meninas.
Assustadoras de medos e boas ouvintes, causadoras de angústias e de loucuras.

Todas nós já estivemos quase noivas, já fomos mulheres casadas, ou meninas casadoiras quebrando amarras e inventando o nosso próprio destino na medida de um sonho, onde, mais tarde, nos apaixonámos loucamente e embalámos os nossos filhos.

Todas nós já tivémos vinte e dois anos, refazendo coisas dos dezassete; todas nós já ficámos perto de alguém pensando que seria aquele o nosso lugar.

Já todas nós, pelo menos uma vez mais, tecemos um novo vestido de noiva repleto de esperas,
desejos e ânsias, bordado com cordões azuis tocando os nossos pés... Como se não os soubéssemos pousar...em que chão? Em que nuvem? Em que mágoa? Esperando por alguém que nos ensinasse!

Todas nós já sentimos o fim debaixo dos nossos pés, para o bem ou para o mal.
E também já sentimos como é que a angústia pode ser tão doce quando se vigia o sono de quem se ama.

Todas nós já nos questionámos -Como é que pude apaixonar-me assim?.
Na medida da impossibilidade de nos acharmos, reconhecermos ou até de nos recolhermos.
Entre a loucura e o amor.

Todas nós, pelo menos uma vez,
planeámos o imprevisível, amámos o improvável,ou nos enganámos na direcção.

Mas como quem tece o futuro, deitando fora o passado ou fazendo dele história, já todas nós confiámos que podíamos ser o que quiséssemos.

Todas nós já fomos prostitutas de rua, acompanhabtes de luxo, encantadoras do nosso amor, mulheres de vida fácil e difíceis sentimentos.

Mas, pelo menos uma vez, já fomos com verdade, no país onde não é preciso fingir, num pensamento feito desejo, noivas de quem queríamos que nos merecesse.
Com um vestido tecido por nós e tranças de longos fios de ilusões.

Fomos noivas sem sabermos onde podíamos por os pés.

E todas nós, sem excepção, gostaríamos de voltar, nem que por uma só vez, a não saber onde pôr os pés.