UMA PÁGINA DO DIÁRIO DO ESQUECIMENTO (I)
... Estava calor. Lembro que a camisa estava colada às minhas costas. Um calor abrasador nesses dias de Julho.
Virei-me mas já não te vi sair. Nem a cor do vestido que envergavas, nem como apanhaste os caracois do cabelo. Não consegui ver nada de teu. Devia ter visto como saíste para tentar adivinhar como voltarias. E se voltarias.
Tento recordar mais e não consigo. Tento levar a colher à boca para comer como deve de ser e não consigo. E sei que agora não consigo. Já consegui fazê-lo mas agora é impossíivel. Mas neste momento ainda é possível pensá-lo, já não é mau. Alturas há que nem me lembro de conseguir pensar. Estar doente é fodido!
Ter consciência disso também.
Lembro-me que me virei e que já não te vi sair. A porta branca do nosso quarto estava entreaberta testemunhando a tua passagem. Como estarias vestida? Com aquele vestido vermelho que deixava antever os teus ombros e que fazia adivinhar os teus seios? É possível que sim, que tivesses levado esse. E as sabrinas pretas com os lacinhos à frente!
A nossa cama estava desalinhada, com os lençois macerados e desamparados. Será que tínhamos feito amor? Provavelmente mas não consigo lembrar-me exactamente o que aconteceu nessa tarde. Só a porta entreaberta e a tua ausência não me saem da cabeça mesmo quando mais nada fica.
Percebo agora que me deixaste nessa tarde.
Hoje consigo entender e lembrar-me que foi isso que nos aconteceu. Ai como dói esta náusea. Não quero lembrar-me mais.
Prefiro os dias em que só me lembro da porta entreaberta e da cama de lençóis brancos desalinhados e não entendo mais nada.
Prefiro pensar que a porta estava à espera que eu a fechasse e a cama à espera que me deitasse com o gato enroscado aos meus pés.
Esta doença é fodida. Ainda por cima podia deixar-me escolher o que vou conseguir recordar-me da próxima vez que acordar novamente e reparar que tenho uma fita de nastro entre o meu pulso e o da pessoa que dorme ao meu lado.
Escrevo sempre que me encontro novamente.
Este acordar que só acontece às vezes, é cada vez mais raro - deduzo pelas datas que vou lendo do que escrevi neste meu passado próximo.
Lembrar passou a ser um viver outra vez.
Reler o que escrevi nos momentos em que o sol voltou a entrar cá dentro e me acordou é como se estivesse a viver esses momentos passados no presente. É assim agora o meu viver!
Lembro-me que era um fim de tarde muito quente.
Virei-me. Tinhas deixado a porta do quarto entreaberta e saíste.
Este acordar que só acontece às vezes, é cada vez mais raro - deduzo pelas datas que vou lendo do que escrevi neste meu passado próximo.
Lembrar passou a ser um viver outra vez.
Reler o que escrevi nos momentos em que o sol voltou a entrar cá dentro e me acordou é como se estivesse a viver esses momentos passados no presente. É assim agora o meu viver!
Lembro-me que era um fim de tarde muito quente.
Virei-me. Tinhas deixado a porta do quarto entreaberta e saíste.
... Estava calor. Lembro que a camisa estava colada às minhas costas. Um calor abrasador nesses dias de Julho.
Virei-me mas já não te vi sair. Nem a cor do vestido que envergavas, nem como apanhaste os caracois do cabelo. Não consegui ver nada de teu. Devia ter visto como saíste para tentar adivinhar como voltarias. E se voltarias.
Tento recordar mais e não consigo. Tento levar a colher à boca para comer como deve de ser e não consigo. E sei que agora não consigo. Já consegui fazê-lo mas agora é impossíivel. Mas neste momento ainda é possível pensá-lo, já não é mau. Alturas há que nem me lembro de conseguir pensar. Estar doente é fodido!
Ter consciência disso também.
Lembro-me que me virei e que já não te vi sair. A porta branca do nosso quarto estava entreaberta testemunhando a tua passagem. Como estarias vestida? Com aquele vestido vermelho que deixava antever os teus ombros e que fazia adivinhar os teus seios? É possível que sim, que tivesses levado esse. E as sabrinas pretas com os lacinhos à frente!
A nossa cama estava desalinhada, com os lençois macerados e desamparados. Será que tínhamos feito amor? Provavelmente mas não consigo lembrar-me exactamente o que aconteceu nessa tarde. Só a porta entreaberta e a tua ausência não me saem da cabeça mesmo quando mais nada fica.
Percebo agora que me deixaste nessa tarde.
Hoje consigo entender e lembrar-me que foi isso que nos aconteceu. Ai como dói esta náusea. Não quero lembrar-me mais.
Prefiro os dias em que só me lembro da porta entreaberta e da cama de lençóis brancos desalinhados e não entendo mais nada.
Prefiro pensar que a porta estava à espera que eu a fechasse e a cama à espera que me deitasse com o gato enroscado aos meus pés.
Esta doença é fodida. Ainda por cima podia deixar-me escolher o que vou conseguir recordar-me da próxima vez que acordar novamente e reparar que tenho uma fita de nastro entre o meu pulso e o da pessoa que dorme ao meu lado.
(para a Isabel e para todos os que vivem (com) o drama da doença de Alzheimer)