Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, julho 20, 2006

UMA PÁGINA DO DIÁRIO DO ESQUECIMENTO (I)




Escrevo sempre que me encontro novamente.
Este acordar que só acontece às vezes, é cada vez mais raro - deduzo pelas datas que vou lendo do que escrevi neste meu passado próximo.
Lembrar passou a ser um viver outra vez.
Reler o que escrevi nos momentos em que o sol voltou a entrar cá dentro e me acordou é como se estivesse a viver esses momentos passados no presente. É assim agora o meu viver!

Lembro-me que era um fim de tarde muito quente.
Virei-me. Tinhas deixado a porta do quarto entreaberta e saíste.

... Estava calor. Lembro que a camisa estava colada às minhas costas. Um calor abrasador nesses dias de Julho.
Virei-me mas já não te vi sair. Nem a cor do vestido que envergavas, nem como apanhaste os caracois do cabelo. Não consegui ver nada de teu. Devia ter visto como saíste para tentar adivinhar como voltarias. E se voltarias.

Tento recordar mais e não consigo. Tento levar a colher à boca para comer como deve de ser e não consigo. E sei que agora não consigo. Já consegui fazê-lo mas agora é impossíivel. Mas neste momento ainda é possível pensá-lo, já não é mau. Alturas há que nem me lembro de conseguir pensar. Estar doente é fodido!
Ter consciência disso também.

Lembro-me que me virei e que já não te vi sair. A porta branca do nosso quarto estava entreaberta testemunhando a tua passagem. Como estarias vestida? Com aquele vestido vermelho que deixava antever os teus ombros e que fazia adivinhar os teus seios? É possível que sim, que tivesses levado esse. E as sabrinas pretas com os lacinhos à frente!
A nossa cama estava desalinhada, com os lençois macerados e desamparados. Será que tínhamos feito amor? Provavelmente mas não consigo lembrar-me exactamente o que aconteceu nessa tarde. Só a porta entreaberta e a tua ausência não me saem da cabeça mesmo quando mais nada fica.

Percebo agora que me deixaste nessa tarde.
Hoje consigo entender e lembrar-me que foi isso que nos aconteceu. Ai como dói esta náusea. Não quero lembrar-me mais.

Prefiro os dias em que só me lembro da porta entreaberta e da cama de lençóis brancos desalinhados e não entendo mais nada.
Prefiro pensar que a porta estava à espera que eu a fechasse e a cama à espera que me deitasse com o gato enroscado aos meus pés.

Esta doença é fodida. Ainda por cima podia deixar-me escolher o que vou conseguir recordar-me da próxima vez que acordar novamente e reparar que tenho uma fita de nastro entre o meu pulso e o da pessoa que dorme ao meu lado.
(para a Isabel e para todos os que vivem (com) o drama da doença de Alzheimer)


terça-feira, julho 18, 2006

PARA A LUISA





Ah! Quem dera ser a única mulher do teu jardim
A única e a mesma
que sempre desposarias após todos os noivados

A só uma a quem darias
as escondidas e frutíferas vidas,
jorradas na brancura do teu lago
vezes e vezes sem conta

A única a quem chamarias bonita
A única desejada
A mais sensual mas duradoura língua no teu sexo
A única que sentiria os meus nos teus
seios duros de princesa

Ah! Quem dera ser a mais que as outras
que tu vês e de quem falas

Quem dera ser a máscara e os mistérios
ainda por revelar
dos tesouros inventados
E o sossego dos medos que voltam
nos caminhos da partida

Quem dera ser a misteriosa sombra
que vigias lentamente das janelas do teu ventre
nas longas tardes dos curtos dias
velados pelo que ainda não sabemos

Ah! Quem dera ser a tua única noiva,
a tua mais que tu
e mais que eu
A sempre noiva

A mãe, a mulher, a amante,
sempre desejada
Musa dos teus fados.

quarta-feira, julho 12, 2006


ESTA ARTE TÃO DIFÍCIL QUE É EDUCAR





Quantas vezes, no passado, ouvi de sábias bocas amigas “Espera até eles serem adolescentes! Aí é que vais ver o que é complicação!”, como resposta aos lamentos das noites mal dormidas por causa da febre e das dores de ouvidos dos meus filhos.
Estas exclamações, dadas à laia de resposta, revelaram-se com tamanho sentido no meu dia-a-dia desde há uns anos para cá, que tenho que os lembrar.

“ Dores de barriga? Corridas para as urgências do Hosp. de D. Estefânia? Isso são doces! Isso é normal e é a parte mais fácil! Espera mais uns anitos! Aí é que vais ver o que é difícil! Vais sonhar com as dores de ouvidos e desejar as dores de barriga!”.
Claro que sorria mas, sinceramente, naquela altura não me pareciam sábios comentários. Por inexperiência minha e falta de capacidade de observação, sei-o hoje!

De facto o que são as noites mal dormidas pelas centenas de vezes que lhes vamos acalmar o choro ou para lhes dar um antipirético comparadas com as que não dormimos de todo pensando como compreendê-los? Dando voltas à cabeça, ao instinto e à sensibilidade para concluirmos como os vamos ajudar, como irão eles conseguir sair desta “fase” tão estranha que é a adolescência nos dias que correm. De facto não é comparável. É amor de igual medida, é preocupação com a mesma cor, é o ser pai ou mãe de coração inteiro, mas é muito mais aflitivo por incapacidade de projectarmos o futuro próximo. Ou de o projectarmos com um final menos apetecível.

Quando eram pequeninos, e com as "camuecas" normais e costumeiras dos miúdos sabíamos, de antemão, e quase com cem por cento de certeza que a doença passaria em 48horas ou, no caso das célebres viroses levariam 3, 5, 7 ou 15 dias a passar!?!
Não que não nos preocupássemos com essas coisas, e a maior parte das vezes excessivamente estando conscientes que tudo poderia complicar-se, mas não sabíamos de todo o que ainda estava para vir!

O que não são e o que não custam as noites do romper dos dentes e dos febrões das anginas comparando-as às noites não dormidas e ao cansaço do desânimo de convivermos com um desenvolvimento, dito adolescente, de forma caótica e nunca conforme o que tínhamos projectado e imaginado?! Para aumentar o nosso desespero está uma atitude de retraimento na comunicação deles para connosco e para com o mundo, respondendo à nossa insistência com um “Não é nada. Estou bem, só preciso de espaço. São coisas minhas. Não, não quero falar!”.
Desesperante, não?

Mas, por outro lado muito educativo para nós, pois aprendemos que como pais conscientes e alertados que somos, temos de conseguir ter a percepção que não é, de facto, o fim do mundo e mesmo que o seja já nada podemos fazer de real como quando os levávamos numa correria às urgências do hospital.

Ao longo do tempo, desde que somos pais, começamos a sentirmo-nos aptos a diagnosticar os males do corpo dos nosso filhos... as estranhas viroses, anginas, intoxicações e excessos alimentares. Até mesmo as alergias.

Mas estar apto a reconhecer, e consequentemente ajudar, um adolescente, mesmo nosso filho com quem lidamos desde que nasceu, relativamente aos males ligados ao espírito - depressões, altos e baixos aparentemente inexplicáveis e dificilmente compreensíveis pelos adultos- não é tarefa fácil e, muitas vezes impossível de realizar de uma assentada só!
O que fazer para que entendam que os amamos e só queremos ajudar?
Se antes bastava o nosso colo, a nossa mão e o nosso conforto para acalmar o seu choro? Se antes o transmitir-lhes confiança e o nosso amor era tão mais simples e intuitivo?

Pelo que tenho constatado com os “meus” adolescentes- os que através de mim nascerem e os que a mim estão ligados pela preocupação e pelo afecto - muitas vezes sentem-se confusos ao ponto de saberem que sofrem porque sentem esse sofrimento, que necessitam de ajuda, mas sem entenderem muito bem sobre o quê, para quê e porquê! Daí aquela atitude típica de se fecharem pensando que se nem eles entendem o sofrimento muito menos os “cotas” que estão tão longe deles irão entender!

Às depressões sucedem-se as ansiedades, os medos e o recolhimento, o isolamento no quarto ou no grupo de amigos.
Querem e pedem-nos mais “liberdade” pensando saber usá-la, mas ainda sem terem sequer noção exacta do que é, de facto, a liberdade nesta vida e o que ela acarreta de responsabilidade.

Mesmo quando os educamos com o lema “educar com responsabilidade para a liberdade” e segundo outros slogans que tais, nunca funciona como aparenta, salvo algumas honrosas excepções que sempre existem - a maior parte das vezes no meio de três irmãos educados de forma idêntica - para nos confundirem ainda mais nesta nossa missão feita arte.

Cada pessoa é única e desta maneira aprendemos a também olhar os adolescentes: cada jovem é um ser único e deve ser olhado como tal, acredito.

Nas tentativas para os ajudar, além da sensibilidade, do amor, compreensão e firmeza, quanto esforço fazemos para lhes dar a entender que só eles poderão construir as suas vidas futuras e mudar o que os preocupa. Alterar os seus mundos e os fantasmas que lhes tiram o sono e lhes ensombram os olhos antigamente alegres, na medida em que quando se compreenderem a eles poderão tomar as atitudes e as posturas mais adequadas à sua própria felicidade.

“Mãe, é preciso todo este sofrimento só para crescer?”- lembro-me tão bem da carita da minha filha mais velha quando teve a sua primeira desilusão amorosa, na qual teimou sem me dar ouvidos.
E agora pergunto eu: Tanto sofrimento para continuarmos nós também a crescer e a ajudar-vos a crescerem e a tentarem ser felizes?

Não seria bem mais fácil se trouxessem manual de instruções!
dedicado a todos nós, pais de coração inteiro

quarta-feira, julho 05, 2006

ACERCA DO MUNDIAL DE FUTEBOL



Acerca da presença de Portugal nas meias-finais do Mundial de Futebol e consequente "futebolândia" em que se tornou o nosso país, alguém me disse hoje o que alguém escreveu e que faz tanto sentido.

Era mais ou menos assim:
" Como seria bom Portugal nas meias-finais do civismo,
Como seria bom Portugal nas meias-finais do respeito,
da educação, do progresso..."

Faz tanto sentido para quem, como eu, tem continuado a viver neste país à beira-mar plantado.
E se não agora, para quando a mudança?

terça-feira, julho 04, 2006

FALA-ME DE SENTIMENTOS


Apressada Mariana desceu do táxi. Nem sequer abriu o chapéu de chuva apesar da água que escorria do céu.
Percorreu o extenso corredor por demais conhecido. O cheiro da alcatifa velha, cansada de milhares de passos apressados, tinha o condão de a fazer estremecer por antecipação pelo prazer que sabia ir encontrar. O seu amado ali estaria, invariavelmente, cumplicemente à sua espera e fariam amor até de madrugada.
O dia seguinte seria como sempre penoso: pelo cansaço e pelo afastamento.
Amavam-se. Compreendiam-se e fugiam do resto do mundo.
Aquelas horas eram suas. Aqueles momentos de mais ninguém.

Ouvia a voz do seu amante por muito que não existissem sons além do surdo e abafado bater dos saltos dos seus sapatos na estafada alcatifa amarelada. Como podia ouvir tão bem as suas palavras, as que iriam arrepiar a sua nuca se ainda nem havia chegado à porta do quarto 107. Sempre o mesmo 107...os números de um lado da porta e do outro os lábios que de lhe molhariam a nuca e as orelhas.

"- Mar...pensei que já não vinhas...demoraste, amor. Vem, anda, mostra-me o teu pescoço. Quero mordê-lo...Mar..."- e partiriam para a vertigem dos sentidos até cairem sem rede na colcha vermelha da cama do hotel.
Arranhá-lo-ia em jeito de tatuagem tal era forte a dor de o ter só por momentos, por horas, por dias. Ele amá-la-ia até à exaustão, faria dela flor, actriz, donzela e dar-lhe-ia o sol, a vida e eternas experiências de morte. Muitas. Mais e mais até o controle da respiração quase desaparecer.

Quanto tempo teria já passado desde que fechara atrás de si a porta do quarto alugado? Era importante? Não, não era. Hoje ninguém mais a esperaria.

A pele era só uma e cobria-os. Antes desejosa, agora pegajosa, um pouco húmida ainda. Era o repouso do suor depois de amar desesperadamente.
Desesperadamente à procura um do outro, como se aquela pudesse ser, mais uma vez, a última. " - Pode sempre ser a última vez que te vejo! Pode sempre ser a última!"- costumavam dizer um ao outro.

Talvez por isso Mariana sempre sorria quando encontrava alguém de quem gostava. Era mais uma chance que tinha de estar com o encanto de quem se quer bem, de quem se gosta, de quem nos é agradável. Podia sempre ser a última vez e tinha a sensação que as pessoas disso se tinham esquecido há muito.

"- Mar..? Conhecemo-nos desde quando?"- perguntou-lhe baixinho, num sussuro, enquanto lhe afagava a face e os cabelos. "- Verdadeiramente já perdi a conta aos anos, aos dias...!"
Mariana acordou de levezinho e enrolou a sua perna na dele em sinal de resposta. Nem ela sabia já. Também tinha perdido a conta aos anos, aos dias, às desilusões e aos prazeres dos reencontros. Às suas mortes.

Disse que sim. Prometeu que lhe escreveria uma carta se a deixasse dormir um pouco. Estava cansada.
"Sim, meu amor, dorme que velarei o teu sono. Ver-te-ei dormir, adormecendo contigo o mundo. Mas promete-me que escreves mesmo uma carta. Para mim, como se estivesse fora há muito tempo. E contar-me-ás de ti. Falar-me-ás de sentimentos. Escreve-me".

Mariana adormeceu.