Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quinta-feira, agosto 31, 2017


ESTA NOITE







No reino de Hisbar as bibliotecas ardem esta noite.

As invasões sempre foram assim.

Encostado à porta de sua casa o velho bibliotecário olha a lua cheia de labaredas.

Segura firmemente o livro que tem na mão: Diálogos.

Sabe que o seu caminho agora se assemelha mais a um monólogo.

Afastando os olhos da cidade violada, toma convictamente o caminho do deserto.

segunda-feira, agosto 28, 2017

CÉU DA BOCA





Queres engravidar-me da vida pedindo-me tudo o que a terra pediu à chuva que jorrou do céu hoje à tarde.

Esgueiro-me para o lado direito da cama onde dormes quando estás comigo agravando cada vez mais a minha culpa desta curva desvairada sem retorno.

Não te ensinei a aquietar-me mas insistes em me dar a provar os prazeres do teu domínio, do treino do prazer contido e mandado.

Lambo a almofada quando me empurras como se não soubesse quem és ou quem vais ser desta vez.

Com os lábios roçados e doridos à tua passagem tento vergar-te ao suplício do desejo, sem que o consintas.

Viro-me, finjo que não te vejo e que não sabes quem sou...não te mostro os olhos, não te dou os lábios, só me vês os semicírculos lunares e nervosamente pressentes o limite.

Mas não, ainda não te rendes nem me roubas.

Pertence-te a ti a escolha de morreres no meu corpo ou de pensar que já não sou mais eu ali.
Tapas-me os olhos com carícias até que gema e te peça que me ames mais depressa, que te lembres de gravar a tua culpa em mim com as minhas vãs desculpas.

Já cravada e dormindo sobre mim mexes-me no cabelo como quem ama uma miúda acabada de nascer. A quem não conheces, de quem não sabes a cor da alma.

Não sei mais o que fazer contigo... nem em que lado da cama dormir.


terça-feira, agosto 22, 2017



VOO






Juro que vi um pássaro 
pousado no teu ombro enquanto dormias
esta manhã.

O teu peito nu descrevia curvas desconexas,
arredondadas...tão redondas como o desejo.
Tinha cores novas nas asas...


Confundia-se com a crista do teu ombro 
branco e adormecido
como se me esperasse, escondido, 
mesmo sem saber quem sou.

Aproximei-me de mansinho
povoando os teus sonhos decorados 
de pétalas vermelhas. 
Toquei-te para ver se eras tu
ou os meus sonhos inventados.

Desapareceste logo depois
que o meu dedo tocou no teu peito
com um beijo no coração
e a improbabilidade pela mão.

Fugiste de repente
soltando o pássaro que pousado estava no teu ombro
devolvendo-lhe a liberdade. 
Fiquei preso a ela.






domingo, agosto 20, 2017



VEM!





Vem!
Pois quando amo
amo assim.
Sem dor, sem mágoa e
sem esperar o amanhã que pode ver-nos.

Vem!
Vê-me com as mãos de quem não sabe
como se de um cego se tratasse,
toca-me com os lábios do tempo que não pára
lábios sem tempo que não sabem.

Vem!
mas não te recordes de ti
chega-te sem teias nem aranhas
que o meu corpo é de veludo cor de sangue
até ao amanhecer do que chamas amor.

Vem!
E não me deixes dormir
pois para a eternidade já pouco falta
e nós, de bocados feitos, 
chegaremos lá depressa.

Vem!
Não olhes para trás de ti
nem por detrás do véu que uso quando amo
de espuma feito para te embalar
como embalam as sereias os marinheiros.

Vem!
Por ti e por mim vem ter comigo
e emaranha-te nos meus cabelos cor de fogo
nos meus pelos cor de mel
e no perfume que de dentro exalo para te prender.

Vem!
vem que te quero ter
Vem que me quero assim
Vem que te quero amar
sabendo que serás o único e o melhor

Vem!
Foste marinheiro do meu desassossego
da juventude, do medo, do ciúme
e do meu sossego agora és filho e enteado.

Vem!
E deixa-te afundar nas veias do meu pescoço
no abraço do meu colo.
vem que te preciso amar 
hoje.

Depois não te lembres mais de mim
olha-me e reconhece-me tão somente 
como a matriz do teu destino.

segunda-feira, agosto 14, 2017




BALANÇOS




Solta-se a escrita como quem solta os cabelos
apanhados por um espartilho durante todo o dia.

Solta-se o grito como quem despe o vestido aprumado
usado diariamente para ver sem ser vista.

Solta-se a alma de quem ama com as letras 
a decorarem as palavras
como quem pinta um quadro 
ou desenha um monstro.

Porque um poema é um desenho sem sons,
tal como a nossa história.

sábado, agosto 12, 2017


REFAZER FUTUROS




Recostou-se no cadeirão deixando pender a cabeça para trás num derradeiro gesto. Pensava no que o passado tinha levado consigo. Na porta que finalmente fora obrigado a fechar para sobreviver a uma forte tempestade que acabaria por ser fatal. No que tinham sido um para o outro e no momento da separação. No deambular pelos caminhos da incerteza e da desconfiança. O momento em que se rendeu por cansaço.

O amor que damos nunca é igual ao amor que se recebe, por muito que o tentemos pesar numa balança de sentires e emoções. É mesmo assim, está sempre em desequilíbrio. Qual o lugar que ocupa o sofrimento? Interrogou-se olhando o nevoeiro que se adensara desde a manhã.

Interrogava-se relembrando o caminho percorrido, as juras, os encontros, as mãos, as fugas, os atrasos, o passado e o vazio do presente. Um presente onde os silêncios alimentavam o dia-a-dia.

Inclinou-se novamente sobre a secretária relendo:  Passam-se semanas e o teu silêncio é perturbador. Creio que não queres ser incomodada e vais levando o teu fardo a bom porto e claro, estás no teu pleno direito. Tenho muitas saudades tuas e terei que viver com isso de forma educada e contida e por isso este mail só fará sentido se souber que está tudo bem contigo, ou seja, na mesma onda de sempre. Afinal o tempo passa, estamos outra vez no Outono e a vida continua não muito emocionante. Um beijo.

- Mas a vida também é feita de silêncios e sonhos. – costumava dizer-lhe ao ouvido, quando permaneciam horas a fio encostados um ao outro.

Um sinal sonoro fê-lo voltar à realidade e percebeu que tinha recebido uma mensagem. Abriu a caixa de correio electrónico.

- A vida também é feita de silêncios e sonhos... Aprendi-o há muito e da pior forma. Também contigo. Mas vou vivendo, refazendo-me, tecendo a teia da minha nova vida e não me queixo talvez por ter igualmente aprendido que de nada valerá. 
Sei que a vida, por vezes, pode não ser emocionante, ou melhor, sei que a vida é sempre emocionante mas que, por vezes, nós não conseguimos sentir essa emoção e essa fantástica experiência que é viver. Mas nunca a devemos perder...não te esqueças que a reencarnação não é certa e que viver é certamente a grande maravilha ! Um abraço. Teresa.

Teria sido melhor não lhe ter escrito! Tratá-lo como um amigo a quem se fala do tempo e dos silêncios??!! Bolas, por que seria que a bitola nesta vida tem sempre que ser o sofrimento?

Aquela dor surda que rói a vontade, o ânimo e a esperança. Aquela dor que fará sempre a diferença no próximo amor. Aquele odor que se recorda como ao perfume de quem se amou. Aquele tremor que nos remexe as entranhas quando ainda temos medo de nos perder.

Sentiu o chão debaixo dos seus pés. 
Acariciou o bichano que permanecera imóvel no sofá fazendo ninho no seu casaco e saiu atrevendo-se nos silêncios vivos da noite.

Buscava o tempo que sara as feridas profundas. Buscava tornar a refazer os futuros.

sábado, agosto 05, 2017


EQUIVALENCIA





Si voy a morir esta noche
moriré contigo adentro.

Me guiaré en este bosque de palabras
con el sonido del dolor


Pero si te encuentro te reconoceré
por el color de tu voz
y por la viga de la equivalencia.


El silencio no está vacío
tan lleno que está de respuestas
que no hay más que ser buscado
el primitivo anhelo de buscar algo contigo.

Si voy a morir esta noche
moriré contigo adentro
sin poder acercarme a tu boca.