ESCURO CONFORTO FEMININO
Se
fosse supersticiosa teria ficado apreensiva com o gato preto que vi dentro da
igreja a esgueirar-se pela curva da coluna. Provavelmente o sacristão ou alguma
das beatas que por lá cirandavam dar-lhe-iam de comer e deixá-lo-iam aquecer-se
por lá durante o Inverno.
E
o bichano por lá se passeava, sem qualquer receio com tamanha agitação.
Pensei
nas crenças e superstições acerca dos gatos pretos.
Durante anos acordei
com carícias masculinas. Depois separei-me e durante longo tempo o acordar era
bem mais solitário e difícil.
Mesmo durante todos
esses anos, e apesar da meiga companhia, era um processo longo, demorado, até
que o meu corpo e a minha mente se conciliassem e tomassem a árdua e dolorosa
decisão de que acordar era a palavra de ordem naquele momento.
Desde muito pequena
que invariavelmente tenho que acordar cedo mas até hoje nunca me habituei.
Acordar cedo e
levantar-me da cama logo de seguida é algo que me acompanha há anos, à excepção
de alguns dias de férias -poucos, muito poucos -em que não estava com as
crianças.
Nesses dias, os
afagos masculinos eram ainda mais meigos, ainda mais masculinos quase sempre a
encaminharem-se para um fim apetecível...mas muito ensonado!
Agora acordo com uma
agitada e persistente companhia feminina.
Muito quente, sem dúvida
alguma, meiga e muito mais perspicaz e capaz de me entender. E de entender a
minha dificuldade em me levantar da cama — cada ano que passa custa-me mais.
Sinto-a a roçar a
pele da minha mão, depois vai subindo pelo meu braço até ao ombro.
Sinto um arrepio quente
perto dos meus seios. E, ainda adormecida, viro-me para o lado contrário na
esperança que ela desista e me deixe dormir mais um pouco. Mas não, ela não
desiste! Se há teimosia e persistência ela encarna-a na perfeição.
Torno a sentir-lhe o
toque macio, mas desta vez no meu pescoço. Sinto o seu hálito no meu pescoço e
arrepio-me quase sempre. Todas as manhãs, mesmo aos domingos.
Não desiste de
tentar que me levante da cama assim como eu não desisto de a tentar dissuadir.
Lanço a mão para as
minhas costas procurando-a. Afago-a, mexo-lhe nas orelhas e o nosso calor
torna-se insuportavelmente acordado.
Apercebo-me que
devem ser mesmo horas de me levantar da cama. Mas ainda fico um pouco mais.
Ela nunca desiste.
Sei perfeitamente que o nosso ritual matutino irá continuar e deixo-me ir neste
gozo repetido. Sinto os cotovelos serem mordiscados alternadamente como quem
morde e foge em tom de provocação. Mais uma e outra vez.
Por fim, sinto que
ela me toca por baixo do edredon com
carícias menos meigas mas mais presentes. Mordisca os meus pés que, entretanto,
se foram mexendo no meio dos agasalhos.
Até que, por fim, no
seu jeitinho atrevido roça os seus pelos nas minhas coxas ainda quentes da
noite. E assim decido que o duche está à minha espera.
Sento-me na borda da
cama, enquanto ela salta ao meu lado, frenética, de cima da cama
para o chão e
vice-versa.
Só naquele momento
dou por falta daquele ruído morno que até então me acompanhava e com o qual
acordo todas as manhãs: o seu ronronar, o seu motor de vida, o modo de mostrar
o seu prazer em estar comigo.
E lá vai ela atrás
de mim até à casa de banho. Depois até à cozinha, depois até à mesa da sala,
onde se senta calmamente, atenta, observadora dos movimentos típicos do pequeno-almoço.
Observa e certamente regista. Às vezes chego a comentar que os gatos devem ser
os enviados dos extraterrestres para nos observarem.
Pois é, mas é assim
que hoje em dia, desde há uns anos, acordo com uma companhia feminina que sabe
exactamente como me deve acordar e nunca se engana nas horas. É a minha gata.
É preta, magricela,
olhos verdes e tem nome de desenho animado para crianças: a pantera Baguera.
É arisca, cheia de
personalidade, engraçadíssima e vou certamente sentir muito a falta da sua
presença na minha cama.