Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

quarta-feira, abril 15, 2015



 ESCURO CONFORTO FEMININO



Se fosse supersticiosa teria ficado apreensiva com o gato preto que vi dentro da igreja a esgueirar-se pela curva da coluna. Provavelmente o sacristão ou alguma das beatas que por lá cirandavam dar-lhe-iam de comer e deixá-lo-iam aquecer-se por lá durante o Inverno.
E o bichano por lá se passeava, sem qualquer receio com tamanha agitação.
Pensei nas crenças e superstições acerca dos gatos pretos.
Durante anos acordei com carícias masculinas. Depois separei-me e durante longo tempo o acordar era bem mais solitário e difícil.
Mesmo durante todos esses anos, e apesar da meiga companhia, era um processo longo, demorado, até que o meu corpo e a minha mente se conciliassem e tomassem a árdua e dolorosa decisão de que acordar era a palavra de ordem naquele momento.
Desde muito pequena que invariavelmente tenho que acordar cedo mas até hoje nunca me habituei.
Acordar cedo e levantar-me da cama logo de seguida é algo que me acompanha há anos, à excepção de alguns dias de férias -poucos, muito poucos -em que não estava com as crianças.

Nesses dias, os afagos masculinos eram ainda mais meigos, ainda mais masculinos quase sempre a encaminharem-se para um fim apetecível...mas muito ensonado!
Agora acordo com uma agitada e persistente companhia feminina.
Muito quente, sem dúvida alguma, meiga e muito mais perspicaz e capaz de me entender. E de entender a minha dificuldade em me levantar da cama — cada ano que passa custa-me mais.
Sinto-a a roçar a pele da minha mão, depois vai subindo pelo meu braço até ao ombro.
Sinto um arrepio quente perto dos meus seios. E, ainda adormecida, viro-me para o lado contrário na esperança que ela desista e me deixe dormir mais um pouco. Mas não, ela não desiste! Se há teimosia e persistência ela encarna-a na perfeição.
Torno a sentir-lhe o toque macio, mas desta vez no meu pescoço. Sinto o seu hálito no meu pescoço e arrepio-me quase sempre. Todas as manhãs, mesmo aos domingos.
Não desiste de tentar que me levante da cama assim como eu não desisto de a tentar dissuadir.
Lanço a mão para as minhas costas procurando-a. Afago-a, mexo-lhe nas orelhas e o nosso calor torna-se insuportavelmente acordado.
Apercebo-me que devem ser mesmo horas de me levantar da cama. Mas ainda fico um pouco mais.
Ela nunca desiste. Sei perfeitamente que o nosso ritual matutino irá continuar e deixo-me ir neste gozo repetido. Sinto os cotovelos serem mordiscados alternadamente como quem morde e foge em tom de provocação. Mais uma e outra vez.
Por fim, sinto que ela me toca por baixo do edredon com carícias menos meigas mas mais presentes. Mordisca os meus pés que, entretanto, se foram mexendo no meio dos agasalhos.
Até que, por fim, no seu jeitinho atrevido roça os seus pelos nas minhas coxas ainda quentes da noite. E assim decido que o duche está à minha espera.
Sento-me na borda da cama, enquanto ela salta ao meu lado, frenética, de cima da cama
para o chão e vice-versa.
Só naquele momento dou por falta daquele ruído morno que até então me acompanhava e com o qual acordo todas as manhãs: o seu ronronar, o seu motor de vida, o modo de mostrar o seu prazer em estar comigo.
E lá vai ela atrás de mim até à casa de banho. Depois até à cozinha, depois até à mesa da sala, onde se senta calmamente, atenta, observadora dos movimentos típicos do pequeno-almoço. Observa e certamente regista. Às vezes chego a comentar que os gatos devem ser os enviados dos extraterrestres para nos observarem.
Pois é, mas é assim que hoje em dia, desde há uns anos, acordo com uma companhia feminina que sabe exactamente como me deve acordar e nunca se engana nas horas. É a minha gata.
É preta, magricela, olhos verdes e tem nome de desenho animado para crianças: a pantera Baguera.
É arisca, cheia de personalidade, engraçadíssima e vou certamente sentir muito a falta da sua presença na minha cama.


 A TUA CIDADE 


  
Vou contar-te uma história que faz parte da nossa. Nunca cheguei a dizer-te. Não achei importante. E o fazer as pazes era sempre tão apaixonadamente forte que as palavras se esqueciam de falar.
Mesmo sem estares a meu lado, mas ainda contigo no coração, fui à tua cidade no fim-de-semana.

Estranho não teres estado comigo na cidade que tão bem me habituei a conhecer através do sentido que davas aos teus sentidos.

Descobri o toque irreal que os sítios e as coisas tinham quando estavas comigo, descobrindo o seu sentido de um modo mais solitário. E perguntei por que razão nos tínhamos chateado...não conseguia saber ao certo.

Os sítios seriam, certamente, os mesmos; os sabores e as temperaturas dos lugares também. Os cheiros e os aromas, o chilrear dos pássaros ao anoitecer e o som enovelado das rolas nos pinheiros estavam lá todos. Mas até os pássaros chilrearam de forma diferente. Ou seriam os ouvidos do coração que eram outros?

Fui ao talho onde costumávamos comprar os bifes, passei na Bertrand onde encomendávamos os livros, sentei-me no café da Fnac depois de namorar por ti os livros e os cds.

Comprei os croissants do costume, cheios de açúcar por cima, na pastelaria do teu bairro. Comi por ti os doces que tanto gostavas e sentei-me a ver ao longe o mar, com um manto verde aos pés, feito de arbustos e plantas verdes que só aquele sítio da tua cidade tem.

Por fim, ao anoitecer, os pássaros começaram a costumada barulheira nas árvores vizinhas à tua casa.

Recordo-me que um dia, perante a minha interrogação de tal fenómeno, inventaste que eles faziam tanto barulho por se debaterem ferozmente pelo melhor ramo de árvore para pernoitar. Ri-me e fingi que acreditei.


Deste-me a mesma explicação quando na Galiza, num dia quentíssimo de verão ao cair da tarde, estávamos sentados num dos claustros de um parador e, de um momento para o outro, os pássaros começaram a mesmíssima barulheira.


Rimos com essa história e com o vinho verde que escorregava pela garganta. Ali ficámos a olhar a copa das árvores vendo o esvoaçar mágico de tanta passarada! Ainda assim, não acreditei totalmente na tua explicação! Fingi só para te fazer feliz.

Hoje acredito que os pássaros fazem aquela algazarra toda ao fim do dia, seja Verão ou seja Inverno, guerreando por um melhor ramo para passar a noite e para namorar.



Naquele fim-de-semana, nas árvores ao pé de tua casa os passaritos fizeram o mesmo barulho de sempre.

Mas não bati à tua porta. Um fim é sempre mais um.

Há fins infinitos dentro de outros fins. O fim da semana, o fim da vida, o fim do turno. O fim de um gelado e o fim dum projecto. Dos amores e dos desamores também. O fim do mundo. Fim é a palavra certa para nos dizer que estamos vivos.

Que há curtos fins de compridas histórias com fins felizes e desfechos com lágrimas. Os fins levam as pessoas a começarem coisas. A teimarem em amar-se outra vez. A empreenderem viagens novas com fins já sabidos ou calculados à partida, com a chegada ao fim.


Só dias mais tarde te abri a porta quando foste ter a minha casa.