Escrever histórias 100 palavras

As histórias fazem parte do nosso universo, mesmo quando já somos crescidos por fora. Escrever histórias é uma das formas de conseguir sobreviver ao mundo dos crescidos. Helena Artur é o pseudónimo da Joana Quinta

segunda-feira, dezembro 31, 2007

QUEBRAR CICLOS



Quebrar o ciclo era a mensagem que lhe invadia o pensamento durante toda a viagem. Era o último dia do ano e havia que quebrar os vários ciclos nocivos que lhe faziam mal e a traziam desajeitada. Que de quando em vez lhe iam lembrando o sofrimento.
Dali a pouco chegaria a casa. Dali a umas horas acabaria o ano.
Na passagem de mais um ano os desejos habituais dados à família e aos amigos. Votos idênticos recebidos.
Mas no seu íntimo sabia imperativo conseguir quebrar o ciclo. O da tristeza, do medo, da moléstia, dos amores frenéticos e sem destino, da fome e do engano.
Já anoitecera e as luzes dos faróis em sentido contrário obrigavam-na a seguir o traço branco da berma da estrada mergulhando ainda mais nos seus pensamentos.
Ciclos, ciclos...giravam na sua cabeça, enchiam as ideias do que quereria dizer ao chegar.
Vivia-se uma época complicada, difícil, sem referências de um passado recente nem caminhos consistentes para o futuro. Social e economicamente era um país à beira de um colapso, de um valente ataque de nervos mas sem as consequências positivas que normalmente chegam após a tempestade. A ideia diária e premente de subsistir e de sobreviver descaracterizava pessoas e acções.
Já nem sequer existia identidade nacional. Portugal já não existia como o país outrora conhecido e reconhecido, como o agradável país à beira mar plantado e muito menos era um lugar amável para se viver . Mal governado, palco de jogos de poder e de danças de cadeiras o fosso entre o que deveria ser feito em prol dos que ali viviam e o que se assistia diariamente era enorme. Dos brandos costumes os portugueses tinham ficado com a tradição. Sentiam-se mal e sem túnel por onde caminhar...muito menos viam alguma luz ao fundo ou a meia distância.
A língua mais ouvida diariamente nem sequer era o português...seria só ela a dar-se conta de que algo estava errado? De que a falta de educação e de civismo misturado com os variados costumes das várias raças não deixavam dúvida sobre a urgência de ter um outro nome ou de se viver num outro planeta onde se pudesse recomeçar de novo.
A estrada estava agora quase deserta dado o adiantado da hora. Daí a uma hora e meia findaria o ano de 2007 e 2008 traria esperanças renovadas apesar de irreais.
Continuava mergulhada nos seus pensamentos querendo chegar rapidamente a casa.
Pensou em como conhecia bem aquela estrada .Percorrida por si desde há anos sempre que inevitavelmente voltava a casa.
À sua verdadeira casa, aos braços de quem verdadeiramente amava. Ao lado de quem queria estar independentemente do número escrito no tempo e das palavras soletradas ao ouvido.
Quebrar um ciclo era o que teria de ser começado nesse novo ano.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

NATAL

É Natal. Mas ontem à tarde já era Natal!
Ontem, ao fim da tarde, caminhando tranquilamente nas ruas ao pé de casa reparei que já era Natal certamente. A natureza estava tão tranquila, tão expectante, tão serena e rosada como que esperando a chegada do Messias.
Curiosamente as pessoas não estavam nem tranquilas, nem expectantes, nem serenas: acotovelavam-se umas às outras nos centros comerciais e nas enormes filas de automóveis numa azáfama inconsciente de sentidos e numa atitude consumista desenfreada.
Espírito de Natal? É tranquilo, sereno, expectante, atento e rosado. Tal como a natureza.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

A AUSÊNCIA NÃO TEM SENTIDOS


Perdi a necessidade de te falar
de te dizer quando não durmo
e deambulo pela casa como as sombras
do destino que nos assiste
e insiste
em fazer-me acordar
ao som dos gemidos que provoca o teu amor
distante, vago, cada vez mais vago,
cada vez mais imaginário.

Mas conforto-me e habituo-me a mim sem ti
a uma vida nova sem correias ou raízes.
Sem ajudas. Sem tristezas sem sentido.
Com ausências.
Sou como Leda num labirinto povoado de cisnes
onde deixei de acreditar que os meus olhos vestem o mar.
Os olhos não são mais os meus
Ou o mar deixou de ser só teu.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

CAIXA AZUL

Pensava ter descoberto
que os teus lábios seriam os olhos da minha pele,
as tuas mãos o embalo das almas doridas
e o teu olhar no meu colo o respeito pelo que sou.

Enganando-me durante anos,
recomecei a reparar que me esquecera
que a vida começou antes de ti.

Muito antes de entrares na minha vida.
Anteriormente a ter-te conhecido.
A ter-te amado.

Hoje, depois de acordar de um atropelo
feito novelo de enganos
quero uma caixa vazia, bem grande e avantajada,
para guardar o vazio
que já não tem lugar cá no fundo.